"Racismo sem números", O Globo, 20/04/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Racismo sem números", O Globo, 20/04/2004

Se você tem cinco minutos e faz parte dos que ainda acreditam que somos uma nação orgulhosa da mestiçagem entre brancos, negros, pardos, cafuzos, mamelucos, índios e amarelos, por favor, leia este artigo. Uma parte da sociedade se esforça para substituir esse ideal de na- ção pelo que chamam de "a verdade": seríamos uma nação bicolor, apenas negros e brancos, onde os negros vivem mal porque os brancos são racistas. Como prova, exibem os números do IBGE. O racismo existe aqui, como em todo lugar, mas ele nem é um traço dominante de nossa identidade, nem pode ser provado por números.

A "Síntese de indicadores sociais de 2003" registra que praticamente 100% das crianças de 7 a 14 anos, de todas as cores, estavam na escola. Mas constata também que, entre os jovens de 15 a 24 anos, metade dos brancos cursava o ensino médio, enquanto a mesma proporção de negros ainda cursava o ensino fundamental. E, na mesma faixa etária, 21,7% de brancos estavam no ensino superior, contra apenas 5,6% de negros. Concluir, porém, a partir desses números que somos racistas é indevido. Porque seríamos esquizofrênicos: para com crianças de até 14 anos, os brancos seriam tolerantes, permitindo o livre acesso de negros à escola. Mas, assim que completassem 15 anos, os brancos se transformariam em racistas nojentos. Isso faz algum sentido?

Em 1991, 86,5% das crianças brancas de 7 a 14 anos estavam na escola contra apenas 71% das negras. Na época, muitos disseram que a razão era o racismo. E a história provou que não: o que afastava as crianças da escola era a pobreza, porque eram compelidas a complementar a renda familiar. Duas iniciativas do governo FH puseram um fim a isso: o Fundef, que repassou dinheiro às prefeituras de acordo com o número de matrículas, e o Bolsa-Escola, que garantiu aos pais o mesmo dinheiro que obtinham dos filhos. É razoável supor que o mesmo acontecerá nas faixas etárias maiores, se o governo Lula mantiver os programas e os estender ao ensino médio. E, se a qualidade do ensino também melhorar, as universidades estarão cheias de pessoas de todas as cores.

Mas os que vêem o Brasil como racista gostam muito das tabelas que mostram que brancos com "x" nú- mero de anos na escola recebem sempre mais do que negros com igual escolaridade. Seria a prova cabal do racismo: duas pessoas igualmente preparadas, mas com salários diferentes. Já disse em outro artigo: duas pessoas podem passar o mesmo tempo na escola sem receber educação de mesmo nível, o mais pobre recebendo pior educação. Educações diferentes, salários desiguais. Mas a tabela mais citada mostra que analfabetos funcionais negros ganham 36% menos que os brancos. Nesse caso, não haveria desnível educacional que explicasse a diferença salarial. Será? O Instituto Paulo Montenegro faz pesquisas para estabelecer o Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional, através de testes de leitura. No último estudo, os pesquisadores lembram que o IBGE seguiu sugestão da Unesco ao considerar analfabeto funcional aquele com menos de 4 anos de estudo, mas se perguntam: "Será que 4 anos garantem o alfabetismo funcional?"

O Instituto quer provar que o analfabetismo funcional pode atingir sé- ries mais avançadas. Mas, para nossos propó- sitos, é valiosa a análise sobre as diferenças entre os que têm até 4 anos de estudo. Entre aqueles que jamais foram à escola, ainda assim 20% se encontram no primeiro de três níveis: têm habilidade baixa, só localizam informações simples em enunciados de uma única frase.

Entre aqueles que têm de 1 a 3 anos de estudo, 32% são analfabetos absolutos, 51% estão no nível 1 e 18% estão no nível 2: têm uma habilidade básica, capazes de localizar informações em cartas e notícias. Assim, é impossível pegar números frios do IBGE e garantir que todos os que têm até 4 anos de estudo formam uma base homogênea. Seria necessário saber quantos brancos e quantos negros estão nos níveis 1 e 2.

Mais importante, porém, é saber se analfabetos funcionais, de mesmo nível, trabalham em funções iguais, com salários diferentes. O IBGE não mede isso. A única ocupação cujo rendimento o IBGE mede é a dos domésticos (a maioria, analfabetos funcionais). Na média nacional, um doméstico branco ganha R$ 228,60 e um negro, R$ 222,10. No Sudeste, os salários são iguais: R$ 255,20; no Sul, no Nordeste e no Centro-Oeste, há uma ligeira vantagem, mas para os negros. Portanto, onde o racismo poderia estar mais presente, na casa das pessoas, ele não está. Ele é visto por bemintencionados que querem encontrar soluções rápidas para pôr fim a desigualdades produzidas ao longo de sé- culos, não pelo racismo, mas pela pobreza. O único caminho, porém, é investir na educação.

Cotas, facilitando artificialmente o acesso à universidade, criarão mais desigualdade e frustração. O cotista, por definição menos preparado, passará mais tempo na universidade ou dela sairá antes da formatura. E porá a culpa no "racismo" dos brancos. O perigo é transformar a nossa sociedade multicor e tolerante numa sociedade bicolor, com ressentimentos mútuos. Talvez você tenha perdido mais do que cinco minutos. Mas o Brasil ainda tem tempo de evitar o pior