"O espírito de Munique e as razões de Bush", O Globo, 05/03/2003 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O espírito de Munique e as razões de Bush", O Globo, 05/03/2003

l Sou contra guerras. Mas também contra simplificações. Eu sei que as multidões em todo o mundo já se decidiram, mas eu admito que possa haver outra resposta para a pergunta: a guerra de Bush contra o Iraque é uma luta contra o terror ou apenas em busca de petróleo? Em alguns artigos, vou usar a História, informações sobre o mundo árabe e números da indústria do petróleo para tentar mostrar que, às vezes, as aparências de fato enganam.

A resposta americana à pergunta das multidões cita sempre, sem explicar, o espírito de Munique. É uma referência aos anos 30, que, verdadeiramente, têm muito a nos ensinar. Hitler assumiu o poder em 1933 e, desde o início, denunciou o Tratado de Versalhes pelas punições que impôs ao povo alemão: pesadas reparações de guerra aos vencedores, redução de território alemão em 10%, proibição de fabricar tanques, submarinos e armamento pesado, o estabelecimento do limite máximo de cem mil homens para as forças armadas e a decretação da Renânia como zona desmilitarizada.

E o que fez o mundo diante do repúdio de Hitler ao Tratado de Versalhes? Nada. Acreditou nas palavras de paz do ditador alemão, que, a cada medida contra as limitações impostas à Alemanha, acenava com a oferta de novos tratados. Foi uma escalada em poucos anos. Em 1935, Hitler instituiu novamente o recrutamento de homens para o serviço militar. Não somente não foi contido como, no mesmo ano, conseguiu assinar com a Grã-Bretanha um tratado naval que reconhecia o direito da Alemanha de ter uma marinha de g u e rr a .

Em 1936, o ditador ordenou que o exército marchasse sobre a zona desmilitarizada da Renânia. O pró- prio Hitler esperava uma reação firme da França e dera ordens a seus generais para que recuassem se houvesse resistência. Não houve, o que fez com que a ousadia de Hitler fosse cada vez maior. Em 38, anexou a Áustria, e o mundo, com medo de uma guerra, ficou calado. No mesmo ano, reivindicou para a Alemanha os territórios de língua alemã da Tchecoslováquia, os chamados sudetos. O mundo ficou à beira de um conflito, mas França e Grã- Bretanha adotaram a política do apaziguamento.

Neville Chamberlain, primeiroministro britânico, esforçou-se pela paz. Em 1938, depois de intensas negociações, aceitou participar de uma conferência em Munique, convocada por Hitler e da qual participaram também o primeiro-ministro da França, Edouard Daladier, e o ditador italiano Benito Mussolini. O que fez Chamberlain? Cedeu os sudetos a Hitler, sem consultar a Tchecoslováquia, e o fez assinar um papel dizendo que aquela era a sua última reivindicação territorial.

Quando Chamberlain desembarcou em Londres, uma multidão o aguardava em delírio em frente ao número 10 de Downing Street, sede do governo. O primeiro-ministro leu um curto pronunciamento, dizendo que o acordo representava o desejo das duas nações de nunca ir à guerra novamente. E, sacudindo o acordo com as mãos, disse para a multidão: "Meus bons amigos, pela segunda vez em nossa história, um primeiro-ministro britânico retorna da Alemanha trazendo a paz com honra. Eu creio que é a paz para o nosso tempo. Vão para casa e tenham um sono tranqüilo".

As multidões também erram. Seis meses depois, Hitler tomou o que faltava da Tchecoslováquia e em setembro de 1939 invadiu a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial. Evidentemente, Saddam não é Hitler nem o Iraque tem o poderio militar da Alemanha nazista. Mas o que vou tentar mostrar amanhã é que, para os Estados Unidos, o novo totalitarismo é o terrorismo dos fanáticos do Islã (que nada tem a ver com os muçulmanos pacíficos de todo o mundo, a maioria). Como Hitler, eles se acham uma raça superior, querem impor a sua vontade ao mundo livre e, para isso, pretendem exterminar aqueles que consideram impuros. E, quando têm um Estado atrás de si, provocam um grande estrago. Osama bin Laden não faria o World Trade Center sem o Afeganistão, e o Iraque poderia vir a ser o seu substituto. É no que dizem acreditar os americanos. Pode ser verdade