"O real valor do petróleo do Iraque", O Globo, 28/03/2003 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O real valor do petróleo do Iraque", O Globo, 28/03/2003

Se o leitor fizer uma pesquisa em jornais do mundo todo vai encontrar dados sobre petróleo que impressionam. Com base em dados reais, mas sem a explicação completa, os leitores podem ter chegado a conclusões que chocam e apavoram. Publicaram que os EUA dispõem de reservas de petró- leo avaliadas em 22 bilhões de barris e têm uma produção média diária de 8,1 milhões de barris. A esse ritmo, concluíram, as reservas estariam extintas em sete anos, ainda dentro do mandato de George W. Bush, considerando que ele se reeleja. Outros jornais descobriram que a Lukoil, russa, a CNPC, chinesa, e a TotalFinaElf, francesa, assinaram contratos bilionários (falaram em US$ 41 bilhões) e já estariam explorando petróleo no Iraque, que tem reservas de 112 bilhões de barris, suficientes para durar 130 anos.

Pronto, estava tudo explicado. Prestes a ficar sem petróleo, aos Estados Unidos não restaria alternativa senão invadir o Iraque e se apropriar do petróleo alheio. E Rússia, China e França, que já teriam assegurado o seu quinhão sem a necessidade de guerra, não poderiam fazer outra coisa senão vetar qualquer tentativa de desarmar o Iraque usando a força. Tudo muito simples se o mundo fosse simples. Mas ele não é.

Vamos analisar primeiro a questão das reservas americanas, valendo-nos dos dados da americana EIA (Energy Information Administration) e de entrevistas com especialistas brasileiros e estrangeiros do setor. De fato, se o leitor dividir o montante das reservas pelo volume de produção anual, encontrará sete anos como prazo para o fim das reservas (ou 11 anos, nos dados mais recentes, pois a produção caiu para 7,7 milhões de barris/dia). Ocorre que este conceito presta-se a toda sorte de mal-entendidos. Porque só quem é do ramo sabe que, ao longo dos anos, fatores como novas descobertas, novas tecnologias, aumento de produtividade, restauração de poços antigos, surgimento de fontes alternativas de energia e mudança no perfil de consumo podem levar — e historicamente têm levado — ao aumento ou à manutenção das reservas ou à diminuição no seu ritmo de queda.

Vejam o que diz em relação ao gás natural este relatório da EIA (o exemplo seria válido para o petróleo também): "As reservas provadas de gás natural úmido em 1977 eram de 209.490 bilhões de pés cúbicos, mas produziuse mais de duas vezes esse volume de gás entre 1977 e 2001, havendo ainda 191.743 bilhões de pés cúbicos de reservas provadas de gás natural úmido em 2001. Somente 12% das reservas provadas adicionais de gás natural foram registradas como descobertas de novos campos entre 1976 e 2001".

Ou seja, não foram novas descobertas as responsáveis por esse desempenho, mas os outros fatores, como novas tecnologias, recuperação de poços antigos etc. Outro fator que ajuda é o preço do petróleo: quanto mais elevado ele for, mais atrativos serão campos que, ao preço de hoje, revelam-se antieconômicos. "Com a pressão para um aumento da produção de petróleo, devido ao esgotamento das reservas dos EUA, as novas fronteiras de produção seriam o Alasca e a Costa do Canadá que ainda não foram exploradas em função de restrições ambientais", diz Adriano Pires, do Centro Brasileiro de Infra-estrutura. A produção americana vai de fato ser declinante no futuro.

"A produção em terra já atingiu o seu pico. Mas a produção off-shore, principalmente no Golfo do México, é bastante promissora. Preços de petró- leo mais elevados e tecnologias mais baratas vão aumentar as possibilidades para o Golfo do México. Eu não vejo como as reservas americanas possam desaparecer em 11 anos", diz Valerie Marcel, pesquisadora sênior do Royal Institute of International Affairs (RIIA), de Londres, especializada em assuntos relativos à indústria do petróleo no Oriente Médio. Nem de longe isso quer dizer que a situação americana em relação ao petró- leo é tranqüila: hoje, o país importa 55% do que é consumido e, segundo a projeção oficial, em 2025, passará a importar 68% (isso será decorrência do aumento do consumo e da diminuição da produção, que cairá a patamares próximos a 5,3 milhões de barris/dia, em 2025, segundo as mesmas previsões).

O que se quer dizer é que é falsa a idéia de que os EUA estão prestes a viver uma catástrofe energética. Na dé- cada de 70, o Clube de Roma dizia que os Estados Unidos já tinham consumido metade de suas reservas e, por isso, previa que no ano 2000 o abastecimento de petróleo no mundo estaria em crise. Pelos motivos já expostos, as previsões não se confirmaram. Fora isso, os americanos contam com o petróleo que suas empresas extraem no exterior, em Angola, Nigéria, Mar do Norte, Indonésia e Venezuela.

Da mesma forma, são inexatas as informações publicadas em toda a parte de que Rússia, China e França já estariam explorando petróleo em terras iraquianas. Antes da guerra, só a empresa turca TPAO estava produzindo petróleo em poços antigos de Kirkuk, assim como a russa Zarubezhnef, que obtiveram licença da ONU para ali operar. E só. Os novos e gigantescos poços não estão sendo explorados por nenhum estrangeiro.

Simplesmente porque as sanções da ONU proíbem expressamente novos investimentos no setor de petróleo no Iraque. O estudo "o futuro do petróleo no Iraque: cenários e implicações", de dezembro de 2002, é revelador. Escrito por Valerie Marcel, com base em levantamentos do Deutsche Bank e da Middle East Economics Survey, ele é uma radiografia completa do que acontece lá. Segundo o estudo, a CNPC chinesa assinou em 1997 um acordo de co-produção, mas os trabalhos nunca come- çaram por causa das sanções. No mesmo ano, as empresas russas Lukoil, Zarubezhneft e Mashinoimport assinaram também contratos que, no entanto, foram cancelados no ano 2000 porque as empresas não iniciaram os trabalhos dentro do prazo acordado (sempre em função das sanções). E, por fim, a TotalFinaElf, também em 1997, chegou a negociar memorandos de entendimento, mas nada assinou, porque teria de garantir, como os russos fizeram, que iniciariam os trabalhos numa data específica. E isso seria impossível, pois não havia horizonte para o fim das sanções. Fora estas, a Petrovietnan e a Syrian Petroleum Company assinaram contratos para compra futura de petróleo, e a indiana Pertamina assinou acordos de risco para exploração na parte ocidental do Iraque, sem nunca ter iniciado os trabalhos. Portanto, o que existia, pouco antes da guerra, eram promessas feitas pelo ditador Saddam Hussein, em cuja permanência no poder, com ou sem guerra, nem mesmo os franceses acreditavam. Enfim, muito pouco para explicar um veto.

Por outro lado, não é racional a crença de que os EUA invadiram o Iraque apenas por petróleo, mentindo sobre os perigos que Saddam representa. Se os americanos estivessem mesmo sufocados atrás de petróleo e se soubessem que Saddam é inofensivo, mais lógico e mais barato seria trabalhar para o fim das sanções. Comprar petró- leo sempre foi mais barato do que tomá-lo. E os EUA podem ser acusados de tudo, menos de falta de racionalidade econômica. Além de tudo, o estudo da pesquisadora Valerie Marcel mostra que a contribuição do Iraque para a manutenção do fornecimento de petróleo ao mundo não será imediata. Hoje, com as sanções, o Iraque responde por 2% do abastecimento mundial, com uma produção de 2,3 milhões de barris/dia. Sem as sanções e com a infra-estrutura de transporte restaurada, o país poderia passar a ser responsá- vel por 4% do fornecimento mundial em três anos. Se houver investimento maciço e estabilidade na área, a participação poderia chegar a 6% em mais dez anos. Sem considerar os estragos da guerra atual, o Iraque precisaria de investimentos imediatos de US$ 5,5 bi para voltar a ser o que era antes de 1991. Para aumentar a produção para seis milhões de barris/dia, seriam necessários US$ 21 bi em dez anos. Compare-se com a situação da Arábia Saudita. Hoje, ela já responde por 10% do abastecimento, mas tem os recursos (duas vezes as reservas iraquianas), a capacidade técnica e o acesso a financiamento barato que permitiriam um aumento para até 15% do fornecimento total de petróleo em dez anos.

A Primeira Guerra do Golfo custou US$ 80 bi (em moeda de hoje), uma quantia que foi rateada por todos que participaram da coalizão de 30 países. O conflito atual, apenas para sua primeira fase, requer, segundo Bush, US$ 74 bi, um dinheiro que, no máximo, será rachado por dois. Se somarmos a isso os investimentos para recuperação do Iraque e mais as quantias necessárias para botar a pleno vapor a indústria petrolífera iraquiana, a obtenção do petró- leo do Iraque através de uma guerra seria a aventura mais anti-econômica jamais levada a cabo na história da humanidade. Na década de 70, os marxistas mais esclarecidos diriam aos menos esclarecidos que explicar a guerra apenas pelo lado do petróleo era ser economicista. Agora, creio, ou não há mais marxistas esclarecidos ou os dois lados tiveram uma recaída no mecanicismo econômico.

Coisa diferente, no entanto, é dizer que a derrubada do regime de Saddam Hussein e o fim dos perigos que ele representa darão aos EUA e ao mundo a oportunidade de depender um pouco menos do petróleo da Arábia Saudita. Quem acompanhou os meus artigos até hoje sabe o que isso pode vir a sign i f i c a r.