Se o leitor fizer uma pesquisa em jornais do mundo todo vai encontrar dados sobre petróleo que impressionam.
Com base em dados reais, mas sem a
explicação completa, os leitores podem ter chegado a conclusões que
chocam e apavoram. Publicaram que
os EUA dispõem de reservas de petró-
leo avaliadas em 22 bilhões de barris e
têm uma produção média diária de 8,1
milhões de barris. A esse ritmo, concluíram, as reservas estariam extintas
em sete anos, ainda dentro do mandato de George W. Bush, considerando
que ele se reeleja. Outros jornais descobriram que a Lukoil, russa, a CNPC,
chinesa, e a TotalFinaElf, francesa, assinaram contratos bilionários (falaram
em US$ 41 bilhões) e já estariam explorando petróleo no Iraque, que tem reservas de 112 bilhões de barris, suficientes para durar 130 anos.
Pronto, estava tudo explicado. Prestes a ficar sem petróleo, aos Estados
Unidos não restaria alternativa senão
invadir o Iraque e se apropriar do petróleo alheio. E Rússia, China e França,
que já teriam assegurado o seu quinhão
sem a necessidade de guerra, não poderiam fazer outra coisa senão vetar
qualquer tentativa de desarmar o Iraque usando a força. Tudo muito simples se o mundo fosse simples. Mas ele
não é.
Vamos analisar primeiro a questão
das reservas americanas, valendo-nos
dos dados da americana EIA (Energy
Information Administration) e de entrevistas com especialistas brasileiros
e estrangeiros do setor. De fato, se o
leitor dividir o montante das reservas
pelo volume de produção anual, encontrará sete anos como prazo para o
fim das reservas (ou 11 anos, nos dados mais recentes, pois a produção
caiu para 7,7 milhões de barris/dia).
Ocorre que este conceito presta-se a
toda sorte de mal-entendidos. Porque
só quem é do ramo sabe que, ao longo
dos anos, fatores como novas descobertas, novas tecnologias, aumento de
produtividade, restauração de poços
antigos, surgimento de fontes alternativas de energia e mudança no perfil de
consumo podem levar — e historicamente têm levado — ao aumento ou à
manutenção das reservas ou à diminuição no seu ritmo de queda.
Vejam o que diz em relação ao gás
natural este relatório da EIA (o exemplo seria válido para o petróleo também): "As reservas provadas de gás natural úmido em 1977 eram de 209.490
bilhões de pés cúbicos, mas produziuse mais de duas vezes esse volume de
gás entre 1977 e 2001, havendo ainda
191.743 bilhões de pés cúbicos de reservas provadas de gás natural úmido
em 2001. Somente 12% das reservas
provadas adicionais de gás natural foram registradas como descobertas de
novos campos entre 1976 e 2001".
Ou seja, não foram novas descobertas as responsáveis por esse desempenho, mas os outros fatores, como novas tecnologias, recuperação de poços
antigos etc. Outro fator que ajuda é o
preço do petróleo: quanto mais elevado ele for, mais atrativos serão campos
que, ao preço de hoje, revelam-se antieconômicos. "Com a pressão para um
aumento da produção de petróleo, devido ao esgotamento das reservas dos
EUA, as novas fronteiras de produção
seriam o Alasca e a Costa do Canadá
que ainda não foram exploradas em
função de restrições ambientais", diz
Adriano Pires, do Centro Brasileiro de
Infra-estrutura. A produção americana
vai de fato ser declinante no futuro.
"A produção em terra já atingiu o
seu pico. Mas a produção off-shore,
principalmente no Golfo do México, é
bastante promissora. Preços de petró-
leo mais elevados e tecnologias mais
baratas vão aumentar as possibilidades para o Golfo do México. Eu não vejo como as reservas americanas possam desaparecer em 11 anos", diz Valerie Marcel, pesquisadora sênior do
Royal Institute of International Affairs
(RIIA), de Londres, especializada em
assuntos relativos à indústria do petróleo no Oriente Médio.
Nem de longe isso quer dizer que a
situação americana em relação ao petró-
leo é tranqüila: hoje, o país importa 55%
do que é consumido e, segundo a projeção oficial, em 2025, passará a importar 68% (isso será decorrência do aumento do consumo e da diminuição da
produção, que cairá a patamares próximos a 5,3 milhões de barris/dia, em
2025, segundo as mesmas previsões).
O que se quer dizer é que é falsa a
idéia de que os EUA estão prestes a viver uma catástrofe energética. Na dé-
cada de 70, o Clube de Roma dizia que
os Estados Unidos já tinham consumido metade de suas reservas e, por isso,
previa que no ano 2000 o abastecimento de petróleo no mundo estaria em
crise. Pelos motivos já expostos, as
previsões não se confirmaram. Fora isso, os americanos contam com o petróleo que suas empresas extraem no
exterior, em Angola, Nigéria, Mar do
Norte, Indonésia e Venezuela.
Da mesma forma, são inexatas as informações publicadas em toda a parte
de que Rússia, China e França já estariam explorando petróleo em terras
iraquianas. Antes da guerra, só a empresa turca TPAO estava produzindo
petróleo em poços antigos de Kirkuk,
assim como a russa Zarubezhnef, que
obtiveram licença da ONU para ali operar. E só. Os novos e gigantescos poços
não estão sendo explorados por nenhum estrangeiro.
Simplesmente porque as sanções da
ONU proíbem expressamente novos investimentos no setor de petróleo no
Iraque. O estudo "o futuro do petróleo
no Iraque: cenários e implicações", de
dezembro de 2002, é revelador. Escrito
por Valerie Marcel, com base em levantamentos do Deutsche Bank e da Middle East Economics Survey, ele é uma
radiografia completa do que acontece
lá. Segundo o estudo, a CNPC chinesa
assinou em 1997 um acordo de co-produção, mas os trabalhos nunca come-
çaram por causa das sanções. No mesmo ano, as empresas russas Lukoil, Zarubezhneft e Mashinoimport assinaram também contratos que, no entanto, foram cancelados no ano 2000 porque as empresas não iniciaram os trabalhos dentro do prazo acordado
(sempre em função das sanções). E,
por fim, a TotalFinaElf, também em
1997, chegou a negociar memorandos
de entendimento, mas nada assinou,
porque teria de garantir, como os russos fizeram, que iniciariam os trabalhos numa data específica. E isso seria
impossível, pois não havia horizonte
para o fim das sanções. Fora estas, a
Petrovietnan e a Syrian Petroleum
Company assinaram contratos para
compra futura de petróleo, e a indiana
Pertamina assinou acordos de risco
para exploração na parte ocidental do
Iraque, sem nunca ter iniciado os trabalhos. Portanto, o que existia, pouco
antes da guerra, eram promessas feitas
pelo ditador Saddam Hussein, em cuja
permanência no poder, com ou sem
guerra, nem mesmo os franceses acreditavam. Enfim, muito pouco para explicar um veto.
Por outro lado, não é racional a
crença de que os EUA invadiram o Iraque apenas por petróleo, mentindo sobre os perigos que Saddam representa.
Se os americanos estivessem mesmo
sufocados atrás de petróleo e se soubessem que Saddam é inofensivo, mais
lógico e mais barato seria trabalhar para o fim das sanções. Comprar petró-
leo sempre foi mais barato do que tomá-lo. E os EUA podem ser acusados
de tudo, menos de falta de racionalidade econômica. Além de tudo, o estudo
da pesquisadora Valerie Marcel mostra
que a contribuição do Iraque para a
manutenção do fornecimento de petróleo ao mundo não será imediata.
Hoje, com as sanções, o Iraque responde por 2% do abastecimento mundial,
com uma produção de 2,3 milhões de
barris/dia. Sem as sanções e com a infra-estrutura de transporte restaurada,
o país poderia passar a ser responsá-
vel por 4% do fornecimento mundial
em três anos. Se houver investimento
maciço e estabilidade na área, a participação poderia chegar a 6% em mais
dez anos. Sem considerar os estragos
da guerra atual, o Iraque precisaria de
investimentos imediatos de US$ 5,5 bi
para voltar a ser o que era antes de
1991. Para aumentar a produção para
seis milhões de barris/dia, seriam necessários US$ 21 bi em dez anos. Compare-se com a situação da Arábia Saudita. Hoje, ela já responde por 10% do
abastecimento, mas tem os recursos
(duas vezes as reservas iraquianas), a
capacidade técnica e o acesso a financiamento barato que permitiriam um
aumento para até 15% do fornecimento total de petróleo em dez anos.
A Primeira Guerra do Golfo custou
US$ 80 bi (em moeda de hoje), uma
quantia que foi rateada por todos que
participaram da coalizão de 30 países.
O conflito atual, apenas para sua primeira fase, requer, segundo Bush, US$
74 bi, um dinheiro que, no máximo, será
rachado por dois. Se somarmos a isso
os investimentos para recuperação do
Iraque e mais as quantias necessárias
para botar a pleno vapor a indústria petrolífera iraquiana, a obtenção do petró-
leo do Iraque através de uma guerra seria a aventura mais anti-econômica jamais levada a cabo na história da humanidade. Na década de 70, os marxistas
mais esclarecidos diriam aos menos esclarecidos que explicar a guerra apenas
pelo lado do petróleo era ser economicista. Agora, creio, ou não há mais marxistas esclarecidos ou os dois lados tiveram uma recaída no mecanicismo
econômico.
Coisa diferente, no entanto, é dizer
que a derrubada do regime de Saddam
Hussein e o fim dos perigos que ele representa darão aos EUA e ao mundo a
oportunidade de depender um pouco
menos do petróleo da Arábia Saudita.
Quem acompanhou os meus artigos
até hoje sabe o que isso pode vir a sign i f i c a r.