O Brasil tem cidadãos que passam fome. O Brasil não sabe
quantos de seus cidadãos
passam fome. Porque pobreza e fome não são sinônimos. Quando o
governo decide gastar R$ 6,5 bi no programa Bolsa Família para acabar com a
fome de 52 milhões de cidadãos, ele está usando equivocadamente um dado
estatístico cuja função não é determinar
a escolha de beneficiados de programas
sociais. O que alguns institutos fazem é
demarcar uma linha de pobreza: a mais
difundida delas estabelece que quem
tem menos do que meio salário-mínimo
de renda familiar per capita é pobre. Hoje, esse valor é de R$ 130, o que coloca
na condição de pobre 11,2 milhões de
famílias, os tais 52 milhões de cidadãos.
É um dado estatístico relevante, que ajuda o governo no planejamento de polí-
ticas públicas. Mas, de posse dessa informação, o governo não pode sair por
aí na ilusão de encontrar os 11,2 milhões de famílias, acreditando que elas
sejam exatamente as únicas pobres no
país e, pior, que todas passem fome. É
tomar ao pé da letra o que é apenas uma
convenção estatística.
Isso leva a situações absurdas. Por
exemplo: cada vez que o governo aumenta o salário-mínimo ele está, automaticamente, aumentando o número de
pobres e de famintos. Se o salário sobe
de R$ 260 para, por exemplo, R$ 300, o
número de pessoas que dispõem de menos de meio salário-mínimo sobe imediatamente. Antes, quem tinha renda
per capita entre R$ 130 e RS 150, para o
governo, não era nem pobre, nem faminto. Com o aumento, passa a ser. Mas isso não é fome, é efeito estatístico.
Na lei que criou o Bolsa Família, o governo usou um valor fixo: R$ 100 (meio
salário-mínimo em 2002), devido à proibição legal de vincular benefícios ao salário-mínimo. Mas o que se tinha em
mente era seguir o conceito. Porque, se
não fosse assim, toda vez que o saláriomínimo aumentasse, o efeito seria o
contrário do descrito acima: o conceito
sobre o que é ser pobre mudaria sempre. Se o mínimo subisse de R$ 200 para
R$ 300, pobres passariam a ser não os
que recebem menos de meio mínimo,
mas aqueles que recebem um terço do
mínimo, numa mudança conceitual maluca, que impediria qualquer acompanhamento de série histórica.
Mas esses não são os únicos problemas de ter renda como único critério
para decidir quem é faminto ou não.
Num casebre, mora uma família com
renda per capita de R$ 100, apta, portanto, a ser beneficiada pelo Bolsa Família.
No casebre ao lado, a renda per capita é
de R$ 101. Ou R$ 110. Ou até R$ 140, não
importa. Apesar de morarem no mesmo
bairro e terem as mesmas dificuldades,
por diferenças irrisórias na renda, esses
vizinhos ficarão de fora do Bolsa Famí-
lia. Para se ter uma idéia, se cerca de um
terço dos brasileiros está abaixo da linha da pobreza por ter renda per capita
inferior a meio salário-mínimo, dois ter-
ços têm renda per capita de apenas um
mínimo: entre um extremo e outro, uma
multidão com renda per capita variando
de R$ 130 a R$ 260.
Usar a linha da pobreza como norte
para achar famintos é um erro. Pelos
motivos apontados acima e por mais este: o pobre pode ter uma renda monetária que o coloca abaixo da linha da pobreza, mas, ao mesmo tempo, ter um ro-
çado, umas galinhas, um porco, uma
horta que lhe fornecem alimentos para
não passar fome. O IBGE, essa institui-
ção de altíssima qualidade, concluiu este ano a Pesquisa de Orçamento Familiar. Os pesquisadores ficaram em média
nove dias na casa das famílias, anotando tudo o que entrava como renda e tudo o que era consumido. Renda e despesa, monetárias ou não: a mandioca
plantada no quintal era computada antes de ser comida como renda não-monetária e, depois, como despesa nãomonetária.
Uma primeira parte da pesquisa já foi
divulgada, mas apenas em dezembro
sairá a melhor tabela, aquela sobre a relação peso/altura, mostrando a quantidade de pessoas emagrecidas, a única
medida que mostra se um indivíduo sofre ou não de fome crônica. Será a primeira vez que tal estudo será feito para
zonas urbanas e rurais e em todo o Brasil. A OMS considera normal um índice
entre 3% e 5% de indivíduos emagrecidos (essa seria a porcentagem de indivíduos geneticamente magros). Entre
1996 e 1997, o IBGE realizou a Pesquisa
sobre Padrões de Vida, restrita às regiões Nordeste e Sudeste, que abrigam
70% da população do país. A média de
indivíduos emagrecidos era de 4,9%, índice normal, portanto. No Sudeste urbano, o índice era de 4%; no rural, de 5,4%.
No Nordeste urbano, a taxa era de 5,5%
e, no rural, de 7,1%. O mais alto índice,
no entanto, é menor do que o do Mé-
xico, onde há 9% de indivíduos emagrecidos. E muito abaixo dos índices encontrados em países onde há comprovadamente fome endêmica, como Haiti
(20%), Etiópia (40%) e Índia (50%).
No Brasil, há pobres que passam fome. Mas tudo indica que eles não sejam
nem de longe os 52 milhões que o Bolsa
Família pretende beneficiar. A pesquisa
do IBGE jogará luz sobre o assunto. O
governo diz que está estudando outros
critérios além da renda. Pena que, até lá,
o governo já terá gastado com o programa R$ 9,5 bilhões, dinheiro que poderia
ser usado em sua maior parte para fazer
uma revolução na educação, mais que
dobrando o orçamento do setor. A educação, repito, é a única coisa que transforma, para melhor, a vida de um país,
de uma família, de um cidadão.
PS: O governo prometeu para novembro o controle sobre a freqüência escolar e a vacinação das crianças e os exames pré-natais das mães. Como disse
um amigo, se a Receita Federal, com todos os computadores e a rede de fiscalização de que dispõe, não consegue
controlar com precisão a vida de sete
milhões de contribuintes, é apenas ilusão acreditar que seja possível fazer o
controle cruzado de três condicionalidades envolvendo 52 milhões de pessoas.