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Ruhollah khomeini, o lider religioso que, do exílio comandou a derrubada da corrupta dinastia dos
Pahlevi: fitas cassete com seus discursos eram contrabandeadas para o Irã
A
aparência foi a de um furacão, mas um
muçulmano iraniano poderia dizer que
o biênio 1978/1979 foi bem o contrário:
em vez de deixar o país de pernas para
o ar, destruindo o que antes estava de pé, o
que se teria passado foi o conserto de tudo, a
restauração da tradição e, fundamentalmente,
dos valores religiosos daquele povo. Tudo é
questão de ponto de vista, mas o fato é que,
depois de anos de luta, muçulmanos tradicionalistas, esquerdistas e liberais se uniram e
mobilizaram o povo iraniano. Uma onda gigantesca e sangrenta de protestos atravessou
1978 e acabou derrubando no início do ano seguinte o xá Reza Pahlevi, que tiranizava o país
desde a década de 40. Foi implantada uma República Islâmica, uma teocracia, cuja autoridade suprema era um chefe religioso — Ruhollah Khomeini, o aiatolá que liderou a revolta e
governou o país até a sua morte em 1989.
Era o fim da tentativa de Reza Pahlevi e, antes, de seu pai, de ocidentalizar o Irã a fórceps.
Em 1936, Reza Shah Pahlevi, o pai, proibira,
por decreto, o uso do c h a d o r, o véu que cobre
os rostos das mulheres muçulmanas. Em 1963,
Pahlevi, o filho, promoveu
o que chamou de "revolu-
ção branca", uma série de
reformas com o objetivo
de modernizar o país,
criando inclusive uma hierarquia religiosa paralela à
tradicional. O resultado é
que, durante a luta para a
derrubada do xá, o chador
virou peça de protesto e
usá-lo era um desafio ao
poder de Pahlevi. Não era
à toa: a antiga Pérsia tinha
se tornado fervorosamente muçulmana desde os
primeiros anos do Islamismo, no século sétimo.
O mundo, no entanto,
assustou-se diante daqueles véus e das manifestações religiosas de
massa. Para compreender o que se passou,
antes é preciso conhecer um pouco mais o Islamismo e a divisão entre sunitas e xiitas _ palavra que, no Brasil, depois da revolução iraniana, passou a ser sinônimo de pessoa radical (o Irã é majoritariamente xiita). A primeira
coisa que se deve saber é que o Islamismo está absolutamente inserido na tradição judaico-cristã. A raiz das três religiões é a mesma:
Abraão. Com a escrava Agar, ele teve Ismael,
de quem os muçulmanos acreditam descender Maomé e todos os primeiros fiéis. Com Sara, ele teve Isaac, de quem descenderia o povo
de Israel. Maomé, no século sétimo, aos 40
anos, começaria a receber revelações de Deus
através do Arcanjo Gabriel. O conjunto dessas
revelações é o Alcorão, que se pretende uma
releitura das Escrituras Sagradas, do Gênesis
ao Apocalipse. O Alcorão respeita e admira os
Livros anteriores, mas pretende revê-los. Durante 23 anos, o anjo revela a Maomé o que
seria a última palavra de Deus (Alá), numa tentativa desesperada de se fazer entender pela
última vez. O Alcorão, que quer dizer "A Leitura", contém os ensinamentos do Islã ("submissão voluntária à vontade de Deus"). Lá estão Adão, Eva, a serpente, Abraão, Isaac, Jacó,
toda a linhagem até Jesus (respeitadíssimo,
considerado homem santo, mas não filho de
Deus). A simples leitura do Alcorão acabaria
com preconceitos milenares. Nele, o mundo
está dividido entre não-crentes e os crentes,
entre os quais estão os judeus, os cristãos e os
muçulmanos. Os não-crentes, os infiéis, são os
politeístas, contra quem se batia o profeta.
Este é o corpo fundamental do Islamismo,
ao qual se curvam suas duas correntes, os sunitas e os xiitas, uma divisão que obviamente
só se delineou com o passar dos tempos. Após
a morte do Profeta, os muçulmanos se reuniram para decidir quem seria o seu sucessor, o
seu califa (vigário). A maior parte acreditava
que Maomé não tinha indicado sucessor. Por
isso, escolheram Abu Bacre, o mais velho mu-
çulmano de então. Outros, no entanto, acreditavam que Maomé, por várias vezes, tinha sim
indicado Ali, seu primo e genro, como o seu
claro sucessor e que todos os futuros califas
deveriam vir da família do Profeta, através da
descendência de Ali e sua mulher Fátima.
Abriu-e então pouco a pouco uma dissidência:
(xiitas vem de "shiít al Ali", que quer dizer literalmente "partidários de Ali"). Ali acabou
sendo o quarto califa, logo assassinado, porém, pelo então governador da Síria, Muravia.
Após a sua morte, a dissidência consolidouse. Os sunitas, imensa maioria desde aquela
época, acreditam que a revelação acabou com
a morte de Maomé. O que resta a fazer é viver
como o Alcorão manda, seguir a Suna (tudo o
que o Profeta fez e disse), e esperar o final dos
tempos. Para os xiitas, a revelação de fato acabou, mas há nela significados secretos a que
só os Imans têm acesso. Para eles, é impossível que a Terra fique sem um Iman (o primeiro deles foi Adão, depois Abraão e toda linhagem até Cristo; depois de Maomé, Ali era o
Iman, e, depois dele, o seu filho e o filho do seu filho e assim por diante). Isso deu margem a
uma sucessão de seitas, surgidas a cada vez
que um Iman morria: ora um sucessor não era
aceito, ora alguém se rebelava e se dizia ele
próprio um Iman. A mais poderosa corrente
xiita é maioria no Irã. Eles são conhecidos como os xiitas dos 12 Imans, o último deles um
Iman oculto, que desapareceu, embora permaneça vivo até hoje, embora não apareça e nada fale (uma crença tão forte quanto a de que
Jesus nasceu de uma virgem, morreu e ressuscitou dos mortos). No final dos tempos, este
Iman aparecerá. Depois, virão à Terra Jesus,
Maomé, Ali, todos os Imans e profetas e finalmente Deus, para o Dia do Juízo Final.
Foi um povo assim, com toda essa força religiosa, que os Pahlevi tentaram modificar, como se fosse possível mudar a fé, a crença e a
tradição de um povo através de decretos, num
ambiente ditatorial cada vez mais sufocante e
corrupto. A resistência veio de partidos de esquerda, mas foram os religiosos quem pouco a
pouco começaram a se rebelar. O principal deles, o aiatolá ("sinal de Deus") Khomeini foi logo deportado em 1963. Ficou no Iraque até 78,
de onde pouco pôde fazer, dado o isolamento
em que se encontrava (gravava fitas cassetes
com seus discursos, que eram contrabandeadas para o Irã). Uma manobra mal calculada
do xá, no entanto, deu a Khomeini o que ele
mais precisava: voz e repercussão. Por pressão do Irã, o Iraque expulsou Khomeini, que se
abrigou em Paris, onde teve liberdade de
ação, seguidores e o serviço persa da BBC de
Londres, que irradiava para o Irã. A queda do
xá ocorreu em janeiro de 1979 e a República
Islâmica foi decretada em abril.
O que os iranianos escolheram para si assombrou, porém, o Ocidente. Há muito que os
muçulmanos somente apareciam na mídia
dentro do contexto da guerra árabe-israelense, e a imagem deles se confundia com a atua-
ção política de seus líderes laicos, seja o panarabismo de Nasser, seja a ação dos terroristas palestinos, uma imagem,
de qualquer forma, absolutamente compreendida pelos
códigos ocidentais. Ao ver,
porém, as multidões reunidas
em torno de um líder religioso, querendo que as leis civis
do país se confundissem com
os preceitos religiosos, o
mundo se encheu de perplexidade, e passou a ser comum ouvir-se a frase "os mu-
çulmanos ainda estão na Idade Média". Hoje, os mais bem
informados sabem que não
existem sociedades com arranjos culturais e modos de
vida melhores do que os de
outras. O que existe é a diferença, a diversidade, que deve ser respeitada por mais
distante que aparentemente
esteja de nossos valores. Os
povos islâmicos têm apenas
uma cultura diferente da nossa e vivem bem com ela. Se
entendermos isso, encararemos com menos paixão o uso
do chador pelas mulheres, as
chibatadas para punir um criminoso ou a amputação de
um braço para punir um roubo. Por acaso o sistema penitenciário brasileiro seria prova de mais civilização? Seria
mais aceitável que chibatadas? A cadeira elétrica, fabricada em 1924, modelo ainda
em uso nos EUA, por exemplo, é um método de punição
e castigo mais nobre do que a
amputação de um antebraço?
E por que o uso do c h ad o r
causa tanta indignação? Imagine-se desfilando nu, em plena Avenida Rio Branco, ao
meio-dia. Quantos minutos
levaria até ser preso? Pois é
preciso ter em mente que mulher sem c h a d o r, para muçulmanos, é como, para nós ocidentais, o mesmo
que homem nu em plena Avenida Rio Branco.
E, no entanto, para um índio ianomâmi, não há
nada mais natural que andar pelado sob sol
escaldante.
Evidentemente, o percurso da revolução islâmica foi pendular como sempre acontece:
nos primeiros anos, houve excessos, exageros, uma tentativa de restaurar a tradição a
qualquer custo. O pêndulo faz agora o caminho contrário: Khomeini foi sucedido pelo
Aiatolá Ali Kamenei, e o atual presidente,
Mohammad Khatami, tenta levar o país a posições mais moderadas. Mas a discussão sobre a política interna do Irã, as forças em conflito, não difere de nenhum outro país: em todos há excessos, erros, acertos. O importante
é que a Revolução Iraniana mostrou que nada
que é humano é uno. Cabe a cada um respeitar
as diferenças. O mundo seria melhor