"Revolução no Irã, o Islã volta a mostrar sua face", O Globo, 28/11/1999 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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Revolução no Irã: o Islã volta a mostrar a sua face

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"Revolução no Irã, o Islã volta a mostrar sua face", O Globo, 28/11/1999

Ruhollah khomeini, o lider religioso que, do exílio comandou a derrubada da corrupta dinastia dos
Pahlevi: fitas cassete com seus discursos eram contrabandeadas para o Irã

A aparência foi a de um furacão, mas um muçulmano iraniano poderia dizer que o biênio 1978/1979 foi bem o contrário: em vez de deixar o país de pernas para o ar, destruindo o que antes estava de pé, o que se teria passado foi o conserto de tudo, a restauração da tradição e, fundamentalmente, dos valores religiosos daquele povo. Tudo é questão de ponto de vista, mas o fato é que, depois de anos de luta, muçulmanos tradicionalistas, esquerdistas e liberais se uniram e mobilizaram o povo iraniano. Uma onda gigantesca e sangrenta de protestos atravessou 1978 e acabou derrubando no início do ano seguinte o xá Reza Pahlevi, que tiranizava o país desde a década de 40. Foi implantada uma República Islâmica, uma teocracia, cuja autoridade suprema era um chefe religioso — Ruhollah Khomeini, o aiatolá que liderou a revolta e governou o país até a sua morte em 1989.

Era o fim da tentativa de Reza Pahlevi e, antes, de seu pai, de ocidentalizar o Irã a fórceps. Em 1936, Reza Shah Pahlevi, o pai, proibira, por decreto, o uso do c h a d o r, o véu que cobre os rostos das mulheres muçulmanas. Em 1963, Pahlevi, o filho, promoveu o que chamou de "revolu- ção branca", uma série de reformas com o objetivo de modernizar o país, criando inclusive uma hierarquia religiosa paralela à tradicional. O resultado é que, durante a luta para a derrubada do xá, o chador virou peça de protesto e usá-lo era um desafio ao poder de Pahlevi. Não era à toa: a antiga Pérsia tinha se tornado fervorosamente muçulmana desde os primeiros anos do Islamismo, no século sétimo.

O mundo, no entanto, assustou-se diante daqueles véus e das manifestações religiosas de massa. Para compreender o que se passou, antes é preciso conhecer um pouco mais o Islamismo e a divisão entre sunitas e xiitas _ palavra que, no Brasil, depois da revolução iraniana, passou a ser sinônimo de pessoa radical (o Irã é majoritariamente xiita). A primeira coisa que se deve saber é que o Islamismo está absolutamente inserido na tradição judaico-cristã. A raiz das três religiões é a mesma: Abraão. Com a escrava Agar, ele teve Ismael, de quem os muçulmanos acreditam descender Maomé e todos os primeiros fiéis. Com Sara, ele teve Isaac, de quem descenderia o povo de Israel. Maomé, no século sétimo, aos 40 anos, começaria a receber revelações de Deus através do Arcanjo Gabriel. O conjunto dessas revelações é o Alcorão, que se pretende uma releitura das Escrituras Sagradas, do Gênesis ao Apocalipse. O Alcorão respeita e admira os Livros anteriores, mas pretende revê-los. Durante 23 anos, o anjo revela a Maomé o que seria a última palavra de Deus (Alá), numa tentativa desesperada de se fazer entender pela última vez. O Alcorão, que quer dizer "A Leitura", contém os ensinamentos do Islã ("submissão voluntária à vontade de Deus"). Lá estão Adão, Eva, a serpente, Abraão, Isaac, Jacó, toda a linhagem até Jesus (respeitadíssimo, considerado homem santo, mas não filho de Deus). A simples leitura do Alcorão acabaria com preconceitos milenares. Nele, o mundo está dividido entre não-crentes e os crentes, entre os quais estão os judeus, os cristãos e os muçulmanos. Os não-crentes, os infiéis, são os politeístas, contra quem se batia o profeta.

Este é o corpo fundamental do Islamismo, ao qual se curvam suas duas correntes, os sunitas e os xiitas, uma divisão que obviamente só se delineou com o passar dos tempos. Após a morte do Profeta, os muçulmanos se reuniram para decidir quem seria o seu sucessor, o seu califa (vigário). A maior parte acreditava que Maomé não tinha indicado sucessor. Por isso, escolheram Abu Bacre, o mais velho mu- çulmano de então. Outros, no entanto, acreditavam que Maomé, por várias vezes, tinha sim indicado Ali, seu primo e genro, como o seu claro sucessor e que todos os futuros califas deveriam vir da família do Profeta, através da descendência de Ali e sua mulher Fátima. Abriu-e então pouco a pouco uma dissidência: (xiitas vem de "shiít al Ali", que quer dizer literalmente "partidários de Ali"). Ali acabou sendo o quarto califa, logo assassinado, porém, pelo então governador da Síria, Muravia. Após a sua morte, a dissidência consolidouse. Os sunitas, imensa maioria desde aquela época, acreditam que a revelação acabou com a morte de Maomé. O que resta a fazer é viver como o Alcorão manda, seguir a Suna (tudo o que o Profeta fez e disse), e esperar o final dos tempos. Para os xiitas, a revelação de fato acabou, mas há nela significados secretos a que só os Imans têm acesso. Para eles, é impossível que a Terra fique sem um Iman (o primeiro deles foi Adão, depois Abraão e toda linhagem até Cristo; depois de Maomé, Ali era o Iman, e, depois dele, o seu filho e o filho do seu filho e assim por diante). Isso deu margem a uma sucessão de seitas, surgidas a cada vez que um Iman morria: ora um sucessor não era aceito, ora alguém se rebelava e se dizia ele próprio um Iman. A mais poderosa corrente xiita é maioria no Irã. Eles são conhecidos como os xiitas dos 12 Imans, o último deles um Iman oculto, que desapareceu, embora permaneça vivo até hoje, embora não apareça e nada fale (uma crença tão forte quanto a de que Jesus nasceu de uma virgem, morreu e ressuscitou dos mortos). No final dos tempos, este Iman aparecerá. Depois, virão à Terra Jesus, Maomé, Ali, todos os Imans e profetas e finalmente Deus, para o Dia do Juízo Final.

Foi um povo assim, com toda essa força religiosa, que os Pahlevi tentaram modificar, como se fosse possível mudar a fé, a crença e a tradição de um povo através de decretos, num ambiente ditatorial cada vez mais sufocante e corrupto. A resistência veio de partidos de esquerda, mas foram os religiosos quem pouco a pouco começaram a se rebelar. O principal deles, o aiatolá ("sinal de Deus") Khomeini foi logo deportado em 1963. Ficou no Iraque até 78, de onde pouco pôde fazer, dado o isolamento em que se encontrava (gravava fitas cassetes com seus discursos, que eram contrabandeadas para o Irã). Uma manobra mal calculada do xá, no entanto, deu a Khomeini o que ele mais precisava: voz e repercussão. Por pressão do Irã, o Iraque expulsou Khomeini, que se abrigou em Paris, onde teve liberdade de ação, seguidores e o serviço persa da BBC de Londres, que irradiava para o Irã. A queda do xá ocorreu em janeiro de 1979 e a República Islâmica foi decretada em abril.

O que os iranianos escolheram para si assombrou, porém, o Ocidente. Há muito que os muçulmanos somente apareciam na mídia dentro do contexto da guerra árabe-israelense, e a imagem deles se confundia com a atua- ção política de seus líderes laicos, seja o panarabismo de Nasser, seja a ação dos terroristas palestinos, uma imagem, de qualquer forma, absolutamente compreendida pelos códigos ocidentais. Ao ver, porém, as multidões reunidas em torno de um líder religioso, querendo que as leis civis do país se confundissem com os preceitos religiosos, o mundo se encheu de perplexidade, e passou a ser comum ouvir-se a frase "os mu- çulmanos ainda estão na Idade Média". Hoje, os mais bem informados sabem que não existem sociedades com arranjos culturais e modos de vida melhores do que os de outras. O que existe é a diferença, a diversidade, que deve ser respeitada por mais distante que aparentemente esteja de nossos valores. Os povos islâmicos têm apenas uma cultura diferente da nossa e vivem bem com ela. Se entendermos isso, encararemos com menos paixão o uso do chador pelas mulheres, as chibatadas para punir um criminoso ou a amputação de um braço para punir um roubo. Por acaso o sistema penitenciário brasileiro seria prova de mais civilização? Seria mais aceitável que chibatadas? A cadeira elétrica, fabricada em 1924, modelo ainda em uso nos EUA, por exemplo, é um método de punição e castigo mais nobre do que a amputação de um antebraço? E por que o uso do c h ad o r causa tanta indignação? Imagine-se desfilando nu, em plena Avenida Rio Branco, ao meio-dia. Quantos minutos levaria até ser preso? Pois é preciso ter em mente que mulher sem c h a d o r, para muçulmanos, é como, para nós ocidentais, o mesmo que homem nu em plena Avenida Rio Branco. E, no entanto, para um índio ianomâmi, não há nada mais natural que andar pelado sob sol escaldante.

Evidentemente, o percurso da revolução islâmica foi pendular como sempre acontece: nos primeiros anos, houve excessos, exageros, uma tentativa de restaurar a tradição a qualquer custo. O pêndulo faz agora o caminho contrário: Khomeini foi sucedido pelo Aiatolá Ali Kamenei, e o atual presidente, Mohammad Khatami, tenta levar o país a posições mais moderadas. Mas a discussão sobre a política interna do Irã, as forças em conflito, não difere de nenhum outro país: em todos há excessos, erros, acertos. O importante é que a Revolução Iraniana mostrou que nada que é humano é uno. Cabe a cada um respeitar as diferenças. O mundo seria melhor