Os jornais não passam muito
tempo sem divulgar algum
estudo relativo à "cisão racial" brasileira, termo muito do agrado dos que dizem que o
Brasil é um país estruturalmente racista. O que estes estudiosos não percebem é que, com isso, em vez de pôr
fim a uma cisão que não existe, vão
acabar dando origem a ela.
A mais recente investida foi o "Relatório de desenvolvimento humano", divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O
relatório não traz produção própria: é
um "cozido" dos muitos estudos que
nos últimos tempos tentam provar que,
no Brasil, brancos dominam negros.
Mas, desta vez, fizeram o que eu chamo
de "sensacionalismo acadêmico". No
capítulo "As desigualdades sócio-raciais", há uma atrocidade. Primeiro, eles
dizem que, em 1982, 58% dos negros e
21% dos brancos estavam abaixo da linha da pobreza, contra 47% dos negros
e 22% dos brancos em 2001. Mas, em
vez de trocar isso em miúdos, preferiram dar destaque a outro recorte. Declararam que, entre 1992 e 2001, o nú-
mero absoluto de brasileiros abaixo da
linha da pobreza caiu cinco milhões,
mas todos brancos ou de outras "categorias raciais": o número de negros pobres teria crescido 500 mil. É como se
só brancos melhorassem de vida. No site do PNUD, essas informações estavam em grande destaque.
Fiz as contas, e espero que o leitor
me acompanhe, apesar da aridez do
terreno. Repetindo: com base nos
números do próprio PNUD, no período entre 1982 e 2001, o percentual de
negros pobres caiu de 58% para 47%
e o de brancos pobres se manteve
praticamente estável, de 21% para
22%. Em números absolutos, em 1982
havia 14,5 milhões de brancos pobres e 30,6 milhões de negros pobres
e, em 2001, 20,1 milhões de brancos
pobres e 36,9 milhões negros pobres.
Portanto, em 19 anos, em função do
aumento populacional, o número de
negros pobres cresceu 6,3 milhões,
apesar da queda percentual, e o nú-
mero de brancos pobres cresceu 5,6
milhões, apesar da estabilidade em
termos percentuais. A população total negra no período cresceu 49,2%
enquanto a população total branca
cresceu 31,9%. Portanto, a diferença
maior de negros pobres no período
— 700 mil — mais do que se justifica
pelo maior crescimento populacional do grupo em relação aos brancos. Se levarmos isso em conta, verificaremos que 25,4% dos brancos
que se somaram à população brasileira no período eram pobres e que
essa proporção foi menor entre os
negros: 24,3%. E mais: se percentualmente a pobreza entre negros tivesse se mantido estável (58%), como
ocorreu com os brancos, o número
de pobres negros em 2001 deveria
ser de 45,6 milhões e não de 36,9 milhões. Logo, 8,7 milhões de negros
escaparam da pobreza. A melhora na
situação do negro foi expressiva: a
pobreza caiu muito mais acentuadamente entre os negros do que entre
os brancos. Naturalmente, o PNUD
não fez essas contas, preferindo
aquele outro recorte "sensacionalista". Eu chamo isso de manipulação.
A coisa é freqüente. Outro dia saiu
um estudo comparando o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de brancos e negros em municípios brasileiros.
O estudo é em si uma bobagem: se 60%
dos pobres são negros, não é surpreendente que o IDH da maior parte dos negros, em qualquer município, não seja
alto. Pois bem: o estudo destacou com
estardalhaço que em apenas sete municípios o IDH dos negros era alto, situação em que os brancos se encontram em 1.591 municípios. É uma escolha estatística pela pior notícia. Eu poderia ter feito outra opção. Por exemplo: em 88% dos municípios pesquisados, os negros têm IDH médio-alto e
médio; o mesmo acontece com os brancos em 69% das cidades. A reportagem
não fez essa conta, claro.
Um outro estudo mostrou que seria
preciso aplicar R$ 67 bilhões em
ações voltadas para negros em saneamento básico, educação e habitação
para que brancos e negros tivessem
um mesmo padrão social. Não consigo entender como alguém pode fazer
uma conta como esta. Qual seria o resultado se o governo enveredasse por
esse caminho? Um país em que os negros estariam em ótimas condições,
mas os 20 milhões de brancos pobres
continuariam com índices humilhantes. Isso não faz o menor sentido. A
conta não deve ser quanto é preciso
para tirar os negros da pobreza, mas
quanto é necessário para tirar os pobres da pobreza, negros e brancos.
Com freqüência, porém, dizem que
minhas afirmações são fruto do que
chamam de pensamento convencional.
E eu concordo: de fato, chego a essas
conclusões usando apenas o raciocínio
lógico. É justamente a falta do pensamento convencional que embaça o debate. Há dias, vi na TVE alguém defendendo a ação do Ministério Público do
Trabalho: "Esse programa é uma revolução silenciosa porque está fazendo as
empresas olharem para dentro de si e
verem que não têm trabalhadores negros. O programa está combatendo os
clichês de que o racismo é um problema econômico, social e educacional.
Porque, na verdade, está sendo demonstrado que há vários negros capazes em número suficiente, e eles não estão sendo absorvidos pelo mercado de
trabalho." Taí um pensamento não convencional. Ou bem é verdade que o racismo barra os negros nas universidades ou bem é verdade que as universidades despejam no mercado todos os
anos muitos profissionais de qualidade
que não são absorvidos pelas empresas
por racismo. Os dois fenômenos não
podem coexistir na mesma medida.
Apesar disso, as cotas são vistas como
remédio para ambos os fenômenos.
Outro argumento freqüente dado como prova de racismo é a distribuição
geográfica de brancos e negros nos
bairros das cidades. Naquele mesmo
programa da TVE, um professor repetiu
o que muitos dizem: nas favelas cariocas, 90% dos habitantes são negros.
Não é verdade. Nas favelas da cidade
do Rio, segundo o IBGE, 57% se declaram negros, contra 41% que se dizem
brancos, um contingente altamente expressivo. Onde está o racismo? Considerando todas as favelas pesquisadas,
22% delas, ou 114 comunidades, têm
mais brancos do que negros, entre elas
a Rocinha, onde os brancos são 54%,
Rio das Pedras, com 58% de brancos e o
Morro do Timbau, com 61% de brancos.
No Brasil, 59,7% dos favelados são negros e 40,3%, brancos.
Em toda família brasileira, o negro se
faz presente, essa é a verdade. Num
país assim, a solução só pode ir numa
única direção: uma política econômica
que distribua renda e políticas sociais
voltadas para o resgate de toda a pobreza, independentemente da cor.