"O significado do Não", O Globo, 01/11/2005 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O significado do Não", O Globo, 01/11/2005

Passado o referendo, as análises sobre o resultado surgiram em quantidade na imprensa. Houve explicações de toda sorte: a vitória do Não teria significado um não para os governos, para as políticas de segurança (ou para a ausência delas), para a social democracia, para a corrupção. Teria sido também um plebiscito contra o poder público, um "fora a todos", uma demonstração de força dos conservadores e, segundo um jornal, a vitória do Não foi um triunfo publicitário.

Para mim a coisa foi mais simples: a vitória do Não expressou o desejo daqueles que são contra a proibição da venda de armas e munições no Brasil.

As campanhas se comportaram mais ou menos bem. Houve exageros dos dois lados, alguns escorregões, mas, no geral, os partidários do Sim e os do Não defenderam bem os seus argumentos. O povo julgou. Não creio que o resultado tenha sido um estí- mulo à compra de armas. Uma das ênfases do Não foi que o Estatuto do Desarmamento, já em vigor, era suficientemente duro, rígido e que não havia necessidade de se aumentar as restrições. O povo votou a partir dessa premissa. Isso torna risível, portanto, a tese de que o resultado do referendo deve suscitar mudanças no Estatuto.

Lamentei, no entanto, a vitória do Não. Como cidadão, estou convencido de que o Sim teria sido a melhor opção. Mas algo que não faço é desmerecer a decisão da imensa maioria, nem atribuir-lhe outros sentidos com base apenas em suposições. Vi alguns analistas insinuarem que os eleitores foram enganados, iludidos, vítimas do marketing. Como a campanha publicitária do Não teria sido melhor, os eleitores teriam votado contra a proibição, não porque estivessem convencidos de que esta é a melhor decisão, mas porque foram iludidos. Isso é desmerecer o poder de discernimento do eleitorado. É uma postura arrogante, antidemocrática, uma reedição da idéia de que "o povo não sabe votar".

Sabe. Dessa crença nenhum de nós pode se afastar um milímetro, sob pena de sermos nós a pôr a democracia em risco. Num país com jornalismo livre, em que os assuntos são discutidos sem amarras, em que os partidos têm um acesso até exagerado a horários eleitorais em rádio e TV, o povo se informa, e bem. E decide. A última pesquisa do Ibope quis saber que fonte de informação os eleitores levariam em conta para decidir o seu voto: 34% disseram que decidiriam o voto depois de conversas com a família. Como 92% disseram que estavam acompanhando o horário eleitoral, os debates em casa devem ter sido proveitosos.

Acreditar que o povo votou iludido ou que se enganou é desacreditar do povo e, por conseguinte, da democracia. Como costumo dizer, é um pensamento que infantiliza o eleitorado. Ser pobre e inculto, repito, não torna ninguém incapaz de tomar decisões de acordo com o que acredita ser o certo e o errado. Dignidade, bom senso, capacidade de avaliar o que é bom e o que é mau não depende de conta bancária nem de grau escolar. Isso não quer dizer que as decisões do povo são sempre as certas, as boas, as melhores. Quer dizer apenas que o povo escolhe, e é responsável por suas escolhas.

É por isso que sociedades democráticas se protegem de antemão. Nenhuma proposta que atente contra elas pode ser submetida ao povo. Nenhuma proposta que fira direitos que a sociedade considerou fundamentais no momento da feitura do contrato político — as chamadas cláusulas pétreas da Constituição — pode ter livre trânsito. É assim que, se um partido ou candidato ousar querer se eleger pedindo o fechamento do Congresso ou o estabelecimento de uma ditadura — qualquer ditadura — terá a sua candidatura cassada. Na Alemanha, por exemplo, partidos nazistas estão proscritos, não sendo sequer permitida a publicação do livro "Minha Luta", de Adolf Hitler. É também por essa razão que é falso o dilema que dizem que o projeto de democratizar o Oriente Médio provoca: sociedades democráticas ali poderiam levar à vitória de partidos cujo ideário fosse o estabelecimento de governos teocráticos. Tolice. Como eu disse, sociedades democráticas tomam precauções e não aceitam propostas que prevejam o seu fim: partidos teocráticos podem e devem ser proibidos.

O referendo teve ainda um outro aspecto: fez cair por terra, mais uma vez, o mito de que os meios de comunicação manipulam, e determinam, a vontade do povo. Ao longo do tempo, a maior parte dos veículos fez um noticiário francamente favorável ao desarmamento, na crença, baseada em pesquisas, de que 80% da população eram contrários à comercialização de armas. Alguns apoiaram o movimento institucionalmente, fora do noticiário. A TV Globo, por exemplo, nas vinhetas que anunciavam o início e o fim dos intervalos comerciais durante a exibi- ção de filmes — o famoso "plimplim"— veiculou mensagens de chargistas contra as armas. Com o referendo aprovado em lei, os principais jornais impressos diários se mostraram isentos no noticiário e, nos editoriais, alguns emitiram opiniões favoráveis ao Sim, outros, ao Não. Os telejornais se mostraram neutros, e sem editoriais a favor ou contra, porque a lei proíbe. Das três revistas semanais de informação, apenas a Veja fez um noticiário a favor do Não, sem abrir espaço algum aos partidários do Sim, o que provocou grande polêmica.

E o povo decidiu. É o que tenho dito: num país com imprensa livre, a informação flui em todas as direções, abrindo espaço para todos os lados. E a pluralidade de idéias sempre caminha no sentido de permitir que a opinião pública se forme livremente.