Passado o referendo, as análises sobre o resultado surgiram em quantidade na imprensa. Houve explicações
de toda sorte: a vitória do Não teria
significado um não para os governos,
para as políticas de segurança (ou para a ausência delas), para a social democracia, para a corrupção. Teria sido também um plebiscito contra o
poder público, um "fora a todos", uma
demonstração de força dos conservadores e, segundo um jornal, a vitória
do Não foi um triunfo publicitário.
Para mim a coisa foi mais simples: a vitória do Não expressou o
desejo daqueles que são contra a
proibição da venda de armas e munições no Brasil.
As campanhas se comportaram
mais ou menos bem. Houve exageros
dos dois lados, alguns escorregões,
mas, no geral, os partidários do Sim e
os do Não defenderam bem os seus
argumentos. O povo julgou. Não creio
que o resultado tenha sido um estí-
mulo à compra de armas. Uma das
ênfases do Não foi que o Estatuto do
Desarmamento, já em vigor, era suficientemente duro, rígido e que não
havia necessidade de se aumentar as
restrições. O povo votou a partir dessa premissa. Isso torna risível, portanto, a tese de que o resultado do referendo deve suscitar mudanças no
Estatuto.
Lamentei, no entanto, a vitória do
Não. Como cidadão, estou convencido de que o Sim teria sido a melhor
opção. Mas algo que não faço é desmerecer a decisão da imensa maioria, nem atribuir-lhe outros sentidos
com base apenas em suposições. Vi
alguns analistas insinuarem que os
eleitores foram enganados, iludidos,
vítimas do marketing. Como a campanha publicitária do Não teria sido
melhor, os eleitores teriam votado
contra a proibição, não porque estivessem convencidos de que esta é a
melhor decisão, mas porque foram
iludidos. Isso é desmerecer o poder
de discernimento do eleitorado. É
uma postura arrogante, antidemocrática, uma reedição da idéia de
que "o povo não sabe votar".
Sabe. Dessa crença nenhum de nós
pode se afastar um milímetro, sob pena de
sermos nós a pôr a democracia em risco.
Num país com jornalismo livre, em que os assuntos são discutidos
sem amarras, em que
os partidos têm um
acesso até exagerado a
horários eleitorais em
rádio e TV, o povo se
informa, e bem. E decide. A última pesquisa
do Ibope quis saber
que fonte de informação os eleitores
levariam em conta para decidir o seu
voto: 34% disseram que decidiriam o
voto depois de conversas com a família. Como 92% disseram que estavam acompanhando o horário eleitoral, os debates em casa devem ter sido proveitosos.
Acreditar que o povo votou iludido
ou que se enganou é desacreditar do
povo e, por conseguinte, da democracia. Como costumo dizer, é um pensamento que infantiliza o eleitorado.
Ser pobre e inculto, repito, não torna
ninguém incapaz de tomar decisões
de acordo com o que acredita ser o
certo e o errado. Dignidade, bom senso, capacidade de avaliar o que é
bom e o que é mau não depende de
conta bancária nem de grau escolar.
Isso não quer dizer que as decisões
do povo são sempre as certas, as
boas, as melhores. Quer dizer apenas
que o povo escolhe, e é responsável
por suas escolhas.
É por isso que sociedades democráticas se protegem de antemão. Nenhuma proposta que atente contra
elas pode ser submetida ao povo. Nenhuma proposta que fira direitos que a sociedade considerou fundamentais no momento da feitura do contrato político — as chamadas cláusulas pétreas da Constituição
— pode ter livre trânsito. É assim que, se um
partido ou candidato
ousar querer se eleger
pedindo o fechamento
do Congresso ou o estabelecimento de uma
ditadura — qualquer ditadura — terá
a sua candidatura cassada. Na Alemanha, por exemplo, partidos nazistas
estão proscritos, não sendo sequer
permitida a publicação do livro "Minha Luta", de Adolf Hitler. É também
por essa razão que é falso o dilema
que dizem que o projeto de democratizar o Oriente Médio provoca: sociedades democráticas ali poderiam levar à vitória de partidos cujo ideário
fosse o estabelecimento de governos
teocráticos. Tolice. Como eu disse,
sociedades democráticas tomam precauções e não aceitam propostas que
prevejam o seu fim: partidos teocráticos podem e devem ser proibidos.
O referendo teve ainda um outro
aspecto: fez cair por terra, mais uma
vez, o mito de que os meios de comunicação manipulam, e determinam, a vontade do povo. Ao longo do
tempo, a maior parte dos veículos
fez um noticiário francamente favorável ao desarmamento, na crença,
baseada em pesquisas, de que 80%
da população eram contrários à comercialização de armas. Alguns
apoiaram o movimento institucionalmente, fora do noticiário. A TV Globo, por exemplo, nas vinhetas que
anunciavam o início e o fim dos intervalos comerciais durante a exibi-
ção de filmes — o famoso "plimplim"— veiculou mensagens de
chargistas contra as armas. Com o
referendo aprovado em lei, os principais jornais impressos diários se
mostraram isentos no noticiário e,
nos editoriais, alguns emitiram opiniões favoráveis ao Sim, outros, ao
Não. Os telejornais se mostraram
neutros, e sem editoriais a favor ou
contra, porque a lei proíbe. Das três
revistas semanais de informação,
apenas a Veja fez um noticiário a favor do Não, sem abrir espaço algum
aos partidários do Sim, o que provocou grande polêmica.
E o povo decidiu. É o que tenho dito: num país com imprensa livre, a informação flui em todas as direções,
abrindo espaço para todos os lados.
E a pluralidade de idéias sempre caminha no sentido de permitir que a
opinião pública se forme livremente.