As ameaças dos EUA têm o
mesmo tom, o mesmo modelo,
talvez as mesmas intenções,
mas, definitivamente, a Síria
não é um Iraque. Há, claro, algumas semelhanças. Síria e Iraque protagonizaram muitos
golpes de Estado, nos anos 60
passaram a ser controlados por
um mesmo partido político —
o socialista Baath — até que
um golpe dentro de um golpe
levou ao poder dois ditadores
que governaram seus países
com mão-de-ferro. Mas as semelhanças param por aí.
A diferença começa com o
petróleo. A Síria tem reservas de
apenas 2,5 bilhões de barris, nú-
mero insignificante se comparado às reservas do Iraque, que
chegam a 130 bilhões de barris.
A produção é de 535 mil barris/dia, metade deles consumidos internamente, uma produ-
ção que declina ano a ano (o pico foi de 590 mil barris em
1996). A esse ritmo, a previsão é
que em dez anos o país se torne
importador de petróleo. Além
disso, a principal companhia de
petróleo — al-Furat Petroleum
Co (AFPC) — é uma joint-venture
entre a Syrian Petroleum Company, a Shell e a PetroCanadá.
Para os ingleses, isso faz a diferença. Mas não é só.
O Iraque se meteu nos últimos 20 anos em duas guerras
expansionistas, e suicidas, contra duas nações islâmicas, o Irã
e o Kuwait. Isso o transformou
num pária internacional e num
país odiado no mundo árabe.
No mesmo período, a Síria
manteve o ódio a Israel, tentando continuar na condição de lí-
der dos árabes contra o poderio israelense. O resultado no
Iraque é que o povo foi levado à
miséria, conseqüência não só
das guerras, mas do embargo
econômico de 12 anos. A Síria,
mesmo destinando dois terços
de seu orçamento para a guerra, conseguiu manter um padrão de vida relativamente
bom para os seus cidadãos.
Os números falam por si. A
mortalidade infantil no Iraque,
considerados mil nascimentos,
era de 103 crianças; na Síria, este número é de 23 (no Brasil a
taxa é de 31). Na Síria, a expectativa média de vida é de 70
anos; no Iraque, 67 (no Brasil,
67,7). Na Síria, 80% das casas
são servidas com água encanada e 90% têm esgoto; no Iraque,
85% têm água e 78%, esgoto (no
Brasil, os números são de 87% e
76%, respectivamente). Na Sí-
ria, 95% das crianças são vacinadas contra tuberculose, 94%
contra a pólio e 97% contra sarampo; no Iraque, os números
caem para 75%, 67% e 63% (no
Brasil, os números são de 93%,
98% e 99%). Do primário à universidade, a escola, na Síria, é
pública e gratuita. Os serviços
médicos públicos são também
universais e de boa qualidade.
Até o ano 2000, toda família tinha direito a uma cesta de alimentos gratuita, com chá, açú-
car, trigo etc. Esse benefício foi
suspenso e temeu-se que uma
onda de protestos varresse o
país. Mas, como os alimentos
na Síria são baratos (graças ao
clima, a produção é grande) e,
como a repressão do governo é
ainda maior, nada aconteceu.
Não que a Síria seja um paraíso: o que se fez ali foi dividir
a pobreza. O salário de um mé-
dico, chefe de setor num grande hospital, não passa de US$
100. Evidentemente, isso gera
grande insatisfação, especialmente numa economia estatizante, com pouco espaço para
a iniciativa privada, mas com
uma elite rica, poderosa e corrupta. O maior problema da Sí-
ria, porém, é a falta de democracia. Desde que tomou o poder em 1970, Hafez Assad governou o país com o uso da for-
ça bruta: pôs na cadeia os opositores e a tortura de presos virou rotina. O sistema foi construído para perpetuá-lo (e os
seus sucessores) no poder: há
um Parlamento eleito de quatro
em quatro anos, mas o Baath
tem assegurado, constitucionalmente, a maioria das cadeiras. De qualquer forma, só
quem detém o poder é o presidente. É ele que nomeia, demite, baixa decretos. O Parlamento não pode sequer propor leis,
mas apenas examinar aquelas
que são mandadas pelo presidente. Com um regime fechado
assim, Hafez Assad conseguiu a
proeza de fazer o sucessor
mesmo depois de morto: o jovem Bashar, um oftalmologista
que, à última hora, ocupou o lugar de herdeiro antes destinado
ao irmão mais velho, morto num
acidente de carro.
Como o pai, Bashar tem conseguido manter o povo unido
não só com uma forte repressão,
mas também com uma retórica
nacionalista contra Israel, que
desde 67 ocupa parte do seu território, as Colinas de Golã (oficialmente, Israel não existe no
mapa, o país é chamado de "os
territórios árabes ocupados").
Como é um país militarmente
exaurido, a Síria tem apoiado tudo o que possa desestabilizar Israel. Tem sido acusada de abrigar grupos terroristas palestinos, como Hamas e Jihad Islâmica, dando-lhes base territorial e
a possibilidade de movimentar
fundos. A Síria nega, mas todos
sabem que ela apóia tais grupos
na ilusão de que o alvo será sempre Israel. Como se isso fosse legítimo.
O governo sírio esquece, porém, que o ideário desses radicais do Islã defende uma teocracia islâmica que reúna todas as
nações muçulmanas. Esquece,
principalmente, que, em 1982,
teve de enfrentar uma revolta
liderada pela Irmandade Mu-
çulmana, que tinha o mesmo
programa político dos terroristas de hoje. A feroz repressão
ao movimento custou dez mil
vidas. É uma amnésia mútua:
os terroristas de hoje se esquecem da repressão do passado e
o governo sírio finge que não
entende o real propósito dos
terroristas.
Melhor faria a Síria se levasse ao extremo as suas diferen-
ças com o Iraque: aproveitando-se das ameaças americanas, deveria abrir suas portas
para o escrutínio da comunidade internacional, romper
seus laços com os grupos terroristas, obter a paz com Israel e, fundamentalmente, levar adiante um projeto de democratização do regime. Porque as ditaduras não duram
para sempre. Muitos acreditaram que o jovem Bashar faria
isso. Até aqui, não fez. Parece
delírio, mas muitos países obtiveram êxito na transição.