B. é empregada doméstica. Branca, segundo ela própria e o consenso brasileiro. O patrão dela,
como parte da remuneração,
paga-lhe um excelente plano de saúde. B.
é visivelmente pobre: na maneira de vestir, digna e decente, mas com roupas baratas; na maneira de falar, com um vocabulário restrito e sem seguir a norma culta; na maneira de agir, sempre muito tímida em ambientes formais.
Certa vez, B. passou mal e procurou
uma clínica de "fundo de quintal", na definição dela. Quando soube, o patrão estranhou: "Por que você não procurou os
melhores hospitais? Seu plano cobre."
Numa segunda ocasião, B. foi direto ao
melhor hospital. Dirigiu-se ao balcão e
disse que não estava se sentindo bem.
Com cara de desprezo, a recepcionista
disse que aquele era um hospital particular. B. respondeu que sabia e mostroulhe a carteira do plano de saúde. A recepcionista, que provavelmente ganhava um
salário menor do que o de B. e morava
num bairro semelhante ao dela, perguntou, sem atinar para a ofensa contida na
pergunta: "Essa carteirinha é sua mesmo?" Depois, mandou que B. esperasse.
E, como estava acostumada nos hospitais públicos, B. ficou esperando por um
bom tempo, até se dar conta de que estava sendo mal atendida. Saiu sem se
queixar, e se dirigiu a outro hospital particular. Com uma ou outra diferença, a
cena do primeiro hospital se repetiu.
Cansada de esperar, B. procurou a clínica
de "fundo de quintal" e foi atendida.
O curioso é que B., poucos dias depois, estava furiosa com um entregador
de restaurante que "subiu pela frente"
para entregar a comida. "Hoje em dia, só
tem folgado," disse B. Tudo isso me foi
relatado pelo patrão de B. na mesa de
um restaurante. E eu mesmo o vi destratando um garçom que não entendia bem
o que ele estava pedindo.
Conto essa história em função da rea-
ção a meu artigo "Lula e o 'classismo'".
Muitos leitores e conhecidos reagiram ao
que escrevi, seja para concordar, seja para rechaçar, o que me leva a voltar ao tema. É certo que o "classismo", o preconceito contra pobres, é universal, existe
em todas as partes do mundo, e eterno,
sempre existiu e, infelizmente, jamais
deixará de existir. Mas, entre nós, ele se
reveste de características que são, acentuadamente, mais nossas.
Aqui a pobreza vem acompanhada de
baixíssimo nível de educação formal e informação, o que torna o nosso pobre, em
geral, mais submisso, menos consciente
de seus direitos. Em vez de B. "rodar a
baiana" nos dois hospitais, ela preferiu se
retirar. Em países desenvolvidos, embora
o "classismo" exista como aqui, os seus
efeitos são menos ostensivos, porque o
pobre de lá, com maior nível de instrução e sabedor dos seus direitos, dificilmente sofre calado o preconceito. A exceção aqui é o banditismo em larga escala. Ou oito ou oitenta. Por outro lado, o
nosso gigantismo populacional e a nossa
enorme desigualdade social provocam
dois fenômenos: a distância entre os que
têm algum dinheiro e os pobres é enorme, mas os dois contingentes são grandes. Nossa "elite" é do tamanho de alguns países europeus e sul-americanos, o
que faz com que exista sempre à vista um
remediado para destratar um pobre.
Ao lado disso, a nossa miscigenação é
uma realidade, e derruba por terra o argumento de que somos estruturalmente
racistas. Não podemos ser. Um dado, a
miscigenação, desmente o outro, o racismo. Evidentemente, como sempre me
preocupo em dizer, o racismo existe aqui
como em todo lugar, mas não é, nem de
longe, uma marca de nossa identidade
nacional. Analisando bem de perto é o
"classismo" a razão oculta por trás da
maior parte de manifestações aparentemente racistas. Como os negros são a
maioria entre os pobres, uma relação automática e inconsciente entre pobreza e
negritude se estabelece, e o preconceituoso destrata o negro.
Prova disso é que grande parte das
ocorrências de racismo se dão com negros que não são pobres. São barrados
em hotéis de luxo, confundidos com motoristas, seguranças, quase sempre na
suposição de que são pobres. Ou alguém
imagina que a um branco, visivelmente
pobre, seria permitido entrar nos salões
sem problemas? O caso de Flávio Ferreira Santana, o dentista paulista negro assassinado por cinco policiais, exemplifica o que quero dizer.
Se os cinco policiais que o mataram
eram também negros, informação que
não vi em nenhuma das reportagens sobre o caso, como falar de racismo? O
dentista morreu porque foi confundido
com um pobre. E um pobre, saindo de
um carro novo, só sendo bandido, concluíram de forma odiosa os policiais.
Mas, e os policiais, não são eles mesmos
pobres? Se o fato de serem negros me faz
dizer que não pode ali ter havido racismo, porque o fato de serem pobres não
me impede de apontar para o "classismo" como o motivo do crime?
A razão é uma só. O "classismo" é tal
que um pobre sempre encontra um mais
pobre para descontar o preconceito que
ele próprio sofre na própria pele.
É por tudo isso que tenho uma preocupação e uma esperança. A preocupa-
ção é que as políticas de cotas raciais jamais eliminarão as bases de um preconceito que não é racial, mas social, como
o "classismo". Ao contrário, as cotas poderão criar no Brasil um racismo que até
aqui não conhecíamos. Entre os pobres,
cor não é nem privilégio nem demérito
de ninguém. As cotas farão com que passe a ser, estimulando no Brasil a cisão racial da pobreza. É um risco enorme. A esperança é que uma política educacional,
justa e eficaz, e uma maior distribuição
de renda, ao diminuírem a pobreza, diminuam também o "classismo". Não eliminaremos de nossa alma esse sentimento
mesquinho. Mas haverá menos gente para sofrê-lo.