O
leitor interessado no tema
certamente já ouviu ou leu
esta frase: a pobreza no
Brasil tem cor e ela é negra.
É uma frase sempre presente nos trabalhos de pesquisadores que defendem a política de cotas raciais, seja
nas universidades, seja no serviço público. Os números que eles divulgam
são de fato eloqüentes. Eles sempre
dizem que os brancos no Brasil são
54% da população e os negros, 45%. E
se perguntam: "Será que a pobreza
acompanha esses mesmos critérios
demográficos?" E respondem que
não: segundo um estudo com dados
de 1999, dos 53 milhões de brasileiros
pobres, os brancos são apenas 36% e
os negros representam 64% do total. E
concluem: os negros são pobres porque no Brasil há racismo.
Os números são eloqüentes, mas
inexatos. Segundo o mesmo estudo,
os negros são 5% e não 45%. Os brancos são, de fato, 54% da população. A
grande omissão diz respeito aos pardos: eles são 40% dos brasileiros (as
alterações no Censo de 2000 foram
mínimas). Entre os 53 milhões de pobres, os negros são 7%, e não 64%. Os
brancos, 36% e os pardos, 57%. Portanto, se a pobreza tem uma cor no
Brasil, essa cor é parda. O que os defensores de cotas fazem é juntar o nú-
mero de pardos ao número de negros, para que a realidade lhes seja
mais favorável: é apenas somando-se
negros e pardos que o número de pobres chega a 64%.
Os artigos desses pesquisadores
primeiro estratificam a população
entre brancos, pretos, pardos, amarelos e indígenas para, logo depois,
agrupar pretos e pardos e chamá-los
a todos de negros (desse ponto em
diante, em todas as estatísticas, há
apenas menção a negros, mas, na
verdade, os números se referem sempre à soma de pardos e negros). Geralmente os pesquisadores fazem a
seguinte observação: "A população
negra ou afro-descendente corresponde ao conjunto das pessoas que
se declaram pretas ou pardas nas
pesquisas do IBGE".
O problema é definir o que é pardo.
Para mim, é constrangedor ter de discutir nesses termos, eu
que não tenho a cor de
ninguém como critério
de nada. Mas, infelizmente, é a lógica que
reina no debate e eu tenho de me curvar a ela.
A funcionária do IBGE
que me ajuda com os
números se disse parda
ao censo, "parda como
a Glória Pires". Mas, para muitos, a Glória Pires
é branca. Digo isso com
real preocupação: quem
é pardo? O pardo é um branco meio
negro ou um negro meio branco?
Somar pardos e negros seria apenas um erro metodológico se não estivesse prestes a provocar uma injustiça sem tamanho. Porque todas as
políticas de cotas e ações afirmativas
se baseiam na certeza estatística de
que os negros são 64% dos pobres,
quando, na verdade, eles são apenas
7%. Na hora de entrar na universidade ou no serviço público, os negros
terão vantagens. Os pardos, não. Do
ponto de vista republicano, isso é
grave. Na hora de justificar as cotas,
os pardos são usados para engrossar
(e como!) os números. Na hora de
participar do benefício, serão barrados. Literalmente. Este ano, a Universidade Estadual de Matogrosso do
Sul instituiu cotas para negros em
seu vestibular: 20% das vagas, 328 lugares. 530 estudantes se disseram negros e tiveram de apresentar foto colorida de tamanho cinco por sete.
Uma comissão de cinco pessoas foi
constituída para analisar as fotos segundo alguns critérios. Só passariam
os candidatos com o seguinte fenótipo: "Lábios grossos, nariz chato e cabelos pixaim", na definição dos
avaliadores. 76 foram
rejeitados por não terem tais características. Provavelmente,
eram pardos.
Que o Brasil é injusto, não há dúvida, mas
querer criar mais uma
injustiça é algo que não
se entende. Por que os
pardos, usados para
justificar as cotas, terão
de ficar fora delas, mesmo sendo tão
pobres quanto os negros? Porque alguns têm nariz afilado ou cabelos ondulados? E por que os brancos, mesmo pobres, serão condenados a ficar
fora da universidade? Os defensores
de cotas raciais dizem que os brancos são "apenas" 36% dos pobres.
Apenas? 36% significam 19 milhões
de brasileiros, um enorme contingente que será abandonado à própria
sorte. A simples existência de tantos
brancos pobres desmentiria por si só
a tese de que a pobreza discrimina
entre pobres e negros: em países verdadeiramente racistas, o número de
pobres brancos jamais chega próximo disso. Da mesma forma, o enorme
número de brasileiros que se declaram pardos, 68 milhões numa população de 170 milhões, já mostra que
somos uma nação amplamente miscigenada. Como o pardo tem de ser, necessariamente, o resultado do casamento entre brancos e negros, o nú-
mero de brasileiros com algum negro
na família é necessariamente alto. Isso seria a prova de que somos uma
nação majoritariamente livre de ódio
racial (repito que, sim, sei que o racismo existe aqui e onde mais houver
seres humanos reunidos, mas, certamente, ele não é um traço marcante
de nossa identidade nacional).
Todos esses números só reforçam
a minha crença de que uma política
de cotas raciais será extremamente
prejudicial e injusta. Em todas as universidades que instituíram políticas
assim há discussões antes não conhecidas entre nós: negros acusando
nem tão negros assim de se beneficiaram indevidamente de cotas; pardos
tentando provar que o cabelo pode
não ser pixaim, mas a pele é negra; e
brancos se sentindo excluídos mesmo sendo tão pobres quanto os candidatos negros beneficiados pelas cotas. Dizendo claramente: corremos o
sério risco de, em breve, ver no Brasil
o que nunca houve, o ódio racial. O
certo é o simples: instituir cotas não
raciais, mas baseadas na renda. Assim, pobres, que hoje não chegam à
universidade, seriam incluídos. Sejam negros, pardos ou brancos.