"O sonho da aposentadoria", O Globo, 28/11/2006 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"O sonho da aposentadoria", O Globo, 28/11/2006

No último debate entre os candidatos à Presidência, os 80 indecisos tiveram que fazer cinco perguntas cada, sobre vários temas, um deles a Previdência Social. Como era de esperar, entre os que se dedicaram ao tema, poucos fizeram perguntas de interesse geral. A maioria se ateve a problemas pessoais, bem específicos, mas uma coisa todos tinham em comum: a vontade de se aposentar cedo. Evidentemente, essa expectativa foi criada por nossas próprias leis, que, até bem pouco tempo, permitiam a aposentadoria a qualquer tempo, desde que cumprido certo tempo de serviço.
Consegui junto ao Ministério da Previdência Social números preciosos que mostram como nós, brasileiros, deixamos cedo o sistema produtivo. Na área urbana, 36,62% dos aposentados deixaram de trabalhar quando tinham menos de 50 anos de idade. Entre os homens, esse percentual sobe para 41,52% e, entre as mulheres, cai para 28,6%. Quando consideramos uma idade um pouco mais elevada, mas ainda assim longe do que poderíamos chamar de "terceira idade", os números ficam ainda mais impressionantes. Mais da metade dos aposentados brasileiros, 54,76%, aposentou-se quando tinha menos do que 55 anos de idade. Entre os homens, esse número sobe para assustadores 63,16% e, entre as mulheres, fica em 41,45%. Mesmo numa faixa etária bastante precoce, os números são expressivos: 18,38% dos aposentados começaram a receber os benefícios do INSS quando tinham até 45 anos.

A base de dados do INSS será atualizada pelo censo que vem sendo feito, e é possível que os números sofram alguma alteração, mas é quase certo que, em linhas gerais, o quadro não mude. O fator previdenciário, que premia quem retarda a aposentadoria e pune quem a antecipa, melhorou um pouco o quadro: hoje, a idade média de brasileiros no momento da aposentadoria passa a ser de 57 anos para os homens, e de 53 para as mulheres. Sob qualquer ponto de vista, idades ainda muito precoces.

No setor público a coisa não muda de figura. Considerando-se apenas os aposentados do Executivo federal, uma população de 374 mil pessoas, 30,4% deles se aposentaram com idade inferior a 50 anos, um número muito expressivo. Se elevarmos um pouco a faixa etária, verificaremos que 56,8% se aposentaram com menos de 55 anos, portanto, ainda muito jovens.

Na Alemanha, Holanda, Suécia, México e Peru, a idade mínima é de 65 anos; na Argentina, 65 anos para homens e 60 para mulheres; na Colômbia e em Cuba, 60 para homens e 55 para mulheres; na Noruega, 67 anos para ambos os sexos. Na França, em 2003, o tempo mínimo de contribuição passou a ser de 40 anos (antes era de 36,5). E para estimular os franceses a adiar a aposentadoria, o governo dá mais 3% por cada ano a mais trabalhado a todo aquele com 60 anos que já pode se aposentar (até o limite de 65 anos). No Reino Unido, a idade mínima é de 65 anos para homens, e 60 para mulheres. O tempo mínimo de contribuição é de 44 anos para homens e de 39 para mulheres. Lá, o Estado também garante apenas um benefício básico: 84,25 libras por semana para uma pessoa sozinha, ou 134,14 libras por semana para um casal. Para manter o padrão de vida, os britânicos são estimulados a poupar durante a vida ativa ou a contratar planos privados de aposentadoria.

Mesmo assim, temendo o colapso da Previdência, Tony Blair já mandou ao Parlamento um projeto propondo que a idade mínima seja de 65 anos para ambos os sexos em 2020, e, a partir daí, vá subindo até atingir 68 anos em 2046.

Se compararmos com a situação internacional, o Brasil fica numa posição inexplicável: é um país jovem e pobre, mas tem uma despesa com Previdência equivalente a um país rico e velho. Em "Reforma da previdência, o encontro marcado", livro de Fabio Giambiagi recentemente lançado, cuja leitura recomendo fortemente, há dados que impressionam. O Brasil, com apenas 6% da população com 65 anos ou mais, gasta com previdência 11,6% do PIB, o mesmo que países como Reino Unido, Holanda e Espanha, que têm uma proporção de idosos muitas vezes maior: Holanda, 14%, Reino Unido, 16% e Espanha, 17%. Giambiagi, como exercício, diz que, se hoje ele já tivesse 57 anos de idade e 35 anos de contribuição, teria direito a uma aposentadoria de R$ 2.200,00, e se pergunta: "Qual é a justificativa para que o governo desembolse esses recursos, quando, se eu tivesse nascido na Suécia — um país com problemas muito menores que os nossos —, eu deveria trabalhar até os 65 anos?" Ele faz um cálculo interessante. Em relação aos suecos, ele gozaria a aposentadoria oito anos mais cedo, e esses oito anos custariam ao governo, considerando 13 benefícios anuais, cerca de R$ 230 mil, que poderiam estar sendo utilizados em áreas fundamentais, como educação e infra-estrutura. Giambiagi conclui: "Portanto, a afirmação de que 'o cidadão que paga 37% ou 38% de carga tributária não vê os recursos retornarem na forma de serviços' deve ser qualificada: os recursos voltam na forma, entre outras coisas, de aposentadorias precoces."

É por isso que as despesas com as aposentadorias do INSS e do setor público consomem cerca de 56% de todos os gastos não-financeiros do governo, sobrando muito pouco para as outras áreas. E é por isso também que, para atender um milhão de funcionários públicos aposentados, o déficit é de R$ 32 bilhões e, para atender 21,1 milhões de beneficiários do setor privado, o déficit do INSS é de R$ 41 bilhões.

Mas os brasileiros ainda não estão convencidos de que é preciso fazer uma nova reforma da Previdência. Continuam sonhando com uma aposentadoria precoce. Talvez seja por isso que os dois candidatos, naquele debate, tenham descartado qualquer mudança na lei. A realidade, em breve, mostrará que há sonhos impossíveis.