Até pouco tempo atrás, os defensores de cotas raciais trabalhavam com os números
relativos aos negros de tal
modo que chegavam a dizer que o Brasil tinha a maior população negra depois da Nigéria e que os negros eram a
maioria entre os pobres brasileiros, razão pela qual mereciam ações afirmativas que os retirassem dessa situação.
Diante disso, esclareci em diversos artigos que os negros são apenas 6,2%
dos brasileiros segundo o Censo de
2000, e 7% dos pobres, e que os números citados pelos defensores de cotas
raciais só ficam tão dilatados porque
eles consideram que os negros são a
soma de pretos e pardos (estes são
39% da população e 57% dos pobres).
Fiz tal esclarecimento porque temia
que os pardos fossem usados para engordar as justificativas para as cotas,
mas, na hora de se beneficiar delas, ficassem de fora. E lembrei o exemplo
da Universidade Estadual de Mato
Grosso do Sul, que instituiu cotas para negros e barrou 76 inscritos porque suas fotos denunciavam que eles
não cumpriam as exigências: não tinham a pele negra, nem o nariz achatado e nem cabelo pixaim. Eram pardos. Eu temia também que as cotas
trouxessem ao Brasil o que não conhecemos — o ódio racial — e relegasse à própria sorte, além dos pardos, 19 milhões de brancos pobres.
Agora que o esclarecimento foi feito
por mim, e não por eles, os defensores
de cotas raciais se justificam em jornais e revistas, alegando que chamam
a pardos e pretos indistintamente de
negros porque os dois grupos têm desempenhos em tudo semelhantes em
diversos indicadores sociais. Seria rotina acadêmica juntá-los e chamá-los
de negros. E tentam afastar o perigo
que venho apontando, dizendo que
ninguém discute que as cotas beneficiarão tanto pretos como pardos, justamente
porque pertencem a
uma mesma categoria
social. Isso seria um
pouco mais tranqüilizador, mas creio, no entanto, que esteja apenas no
campo das boas intenções. Do contrário, como explicar o que aconteceu em Mato Grosso
do Sul, onde pretos entraram e pardos foram
barrados? E há outros
casos que comprovam que os meus temores são concretos.
Em 9 de novembro de 2001, o então governador do Rio, Anthony Garotinho, sancionou a lei 3.708, instituindo as cotas na Uerj dentro de um
espírito mais largo. Eis o que diz o artigo primeiro: "Fica estabelecida a
cota mínima de até 40% para as populações negra e parda no preenchimento das vagas relativas aos cursos
de graduação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da
Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf)." Notem que a lei fala
em negros e pardos. A ser verdadeira
a tese de que chamar pretos e pardos
de negros é rotina, o movimento negro e os defensores de cotas raciais
teriam cometido uma redundância
na elaboração da lei.
Mas não se tratou de redundância.
Para a lei, negro era sinônimo de preto
e pardo era pardo mesmo. Mas não passou
muito tempo para que
os defensores das cotas
raciais estreitassem a
lei. Afinal, no primeiro
vestibular, entraram
muitos pardos com nariz afilado, cabelos lisos
e pele em tom claro.
Aproveitando a necessidade, constatada pelo
governo do estado, de
harmonizar a lei das cotas raciais com uma outra lei que instituía também cotas para
alunos da rede pública, unificando-as
numa só lei, os defensores das cotas se
mobilizaram de tal modo que os pardos foram excluídos da legislação. A
lei 4.151, sancionada em 4 de setembro
de 2003, vetou as cotas aos pardos,
com a seguinte redação do artigo primeiro: "Com vistas à redução de desigualdades étnicas, sociais e econômicas, deverão as universidades públicas estaduais estabelecer cotas para
ingresso nos seus cursos de graduação aos seguintes estudantes carentes:
I — oriundos da rede pública de ensino; II — negros; III — pessoas com deficiência, nos termos da legislação em
vigor, e integrantes de minorias étnicas." Os pardos sumiram. A nova lei revogou as anteriores.
E o sumiço dos pardos não foi obra
de nenhum conceito abrangente de
alguns pesquisadores que consideram que pardos são negros. Foi ato
deliberado. Porque a mesma lei abre
dois parágrafos para definir coisas
simples, um para definir o que entende por "estudante carente" e, outro,
para definir o que entende por "aluno
oriundo da rede pública". Mas não há
nenhum parágrafo para definir o que
entende por negro (poderiam, se quisessem incluir os pardos, explicitar
que, para o legislador, "negros são a
soma de pretos e pardos", mas não o
fizeram). E, pior, acrescentaram um
parágrafo, aceitando a autodeclara-
ção como forma de os negros se inscreverem, mas ordenando que a universidade crie mecanismos para
combater fraudes. Tomara que não
sigam o exemplo de Mato Grosso do
Sul e exijam fotos. Se um pardo se fizer passar por negro, é fraude, cassese a inscrição.
Haverá ainda alguém capaz de repetir que ninguém discute que cotas
raciais são para pretos e para pardos? Difícil conciliar essa crença com
o que acontece no Rio e em Mato
Grosso do Sul. Volto a repetir: sei que
o racismo existe no Brasil como em
qualquer parte onde haja homens,
mas, entre nós, ele não é preponderante. E a cor não impede ninguém de
entrar na universidade. Quem impede é a pobreza, ao impor um ensino
médio ruim, seja a negros, pardos ou
brancos.
Quem tem lido os meus artigos pode estar se perguntando por que insisti, até aqui, no tema. É porque considero que todos os que debatem o
assunto são sempre sinceros e movidos pela boa-fé, tentando sempre o
melhor para o país. Isso não faz de
mim um ingênuo obtuso nem um cí-
nico. Faz de mim um jornalista que
acredita que ninguém é dono da verdade e que todos os assuntos devem
ser discutidos. Mesmo os mais espinhosos. Uma coisa é certa: depois de
tanta discussão, com debate de opiniões diferentes, o leitor tem a seu
dispor material suficiente para formar o seu juízo.
P.S. — Um último dado para a reflexão: a Universidade Federal da Bahia foi estimulada a adotar cotas. Enfrenta um dilema: uma pesquisa feita
entre os alunos aprovados no vestibular mostrou que 51% deles se declaram negros. Como conciliar esse
dado com a adoção de cotas de 40%
para negros?