No mesmo dia em que Terri
Schiavo morria, na quinta-feira, 31 de março, o mundo tomava conhecimento de que
o Papa entrara em sua agonia final. Os
pais de Terri, católicos e com o apoio
da Igreja e do mundo cristão, chegavam ao fim da luta de anos para que o
genro não tivesse autorização para fechar o tubo de alimentação que a mantinha viva. Líder máximo da Igreja Católica, no mesmo momento o Papa
anunciava aos cardeais a decisão de
não ir para o Hospital Gemelli: consciente de que estava moribundo, recebeu a unção dos enfermos e decidiu
que teria uma morte digna em sua residência, sem aparelhos, sem tentativas desesperadas de salvação. Muitos
viram nessas duas situações um paradoxo. A mesma igreja que condenava a
ação do marido de Terri aceitava com
resignação e naturalidade a decisão do
Papa. Mas não há paradoxo algum.
Terri não estava moribunda. Mesmo severamente incapacitada, mesmo sem ter consciência plena do que
acontece em sua volta, se continuasse a receber comida e água, ela viveria indefinidamente. Todos aqueles
que já conviveram com quem já sofreu danos cerebrais gravíssimos, incapacitantes e irreversíveis sabem
que não estão mais diante da mesma
pessoa, mas certamente continuam
diante de uma pessoa. De uma pessoa
humana, fraca, indefesa, incapaz,
mas, ainda assim, uma pessoa.
Em outubro de 2002, a Corte de Apelações da Flórida ouviu cinco médicos:
dois indicados pelo marido, um, pelos
juízes e dois, pelos pais. Os três primeiros declararam que Terri era vítima de
um persistente estado vegetativo, sem
nenhuma consciência, sem sentir dor:
suas expressões faciais, as reações à
luz, ao toque e aos sons seriam apenas
atos reflexos e autômatos. Os médicos
indicados pelos pais disseram que não
podiam afirmar se tais atos eram ou
não produto da consciência ou do que
restou dela. Disseram mais: Terri poderia ter avanços na sua capacidade de
entendimento. A Corte ficou com a opinião da maioria e autorizou que a alimentação fosse interrompida.
Vi alguns dos vídeos feitos pelos
médicos e pela família. Em um deles,
a mãe de Terri diz coisas carinhosas e
sussurra algo em seus ouvidos: a expressão facial de Terri, antes contraí-
da, relaxa e seus olhos e lábios fazem
aqueles movimentos típicos do que
chamamos de sorriso. Três médicos
chamaram isso por outro nome: reflexo. Os outros dois foram mais humildes: quem poderá dizer, com certeza,
que aquilo não foi mesmo um sorriso? O eletroencefalograma de Terri jamais foi compatível com o diagnóstico de morte cerebral, pois sempre indicou alguma atividade, desordenada, atípica, tênue, própria àqueles
que têm um cérebro altamente danificado. Mas sempre houve atividade.
Após a morte de Terri, o presidente
Bush disse que, havendo dúvidas, a
sentença deve ser sempre favorável à
vida. Eu concordo com ele.
O caso de Terri nada tem a ver com
eutanásia nem com ortoeutanásia. Pode-se discordar de quem defende a eutanásia, mas é imperativo reconhecer
que o seu princípio é abreviar o sofrimento dantesco de um paciente que
inevitavelmente morrerá num curto
espaço de tempo: consciente da proximidade e da inevitabilidade de sua
morte, o paciente solicita ajuda para
abreviar o seu sofrimento. Na ortoeutanásia, o paciente impede que se prolongue, de maneira artificial, uma morte que será certa e breve. O caso de
Terri não se enquadra nem num caso
nem no outro. Alimentada, ela permaneceria viva por tempo indefinido.
A Humanidade desceu muitos degraus com a decisão da Justiça americana favorável à morte de Terri. Negar
alimentação a uma pessoa indefesa,
por treze dias, até que morra de fome e
sede é algo de uma crueldade que eu
jamais imaginei que pudesse contar
com o amparo de um Estado constituí-
do. A decisão impõe dilemas éticos intransponíveis. Se é legítimo concordar
com a eliminação física de Terri porque
ela tem um déficit altíssimo de consciência ou uma consciência próxima
do limite zero, será legítimo também fazer o mesmo em relação a casos pró-
ximos? O que fazer com recém-nascidos com lesões cerebrais gravíssimas?
O que fazer com pessoas que se tornaram totalmente incapazes, mas, como
Terri, sobreviveram? Matá-las, abertamente, é algo quer só uma ideologia totalitária, como o nazismo, poderia aceitar. A justificativa de que Terri estava
"ligada" a tubos não se sustenta. Assim
como aqueles que perderam o intestino e são ligados a bolsas higiênicas,
Terri tinha uma sonda que levava comida e água diretamente ao estômago.
Mas ela não estava presa a uma máquina. Na hora da alimentação, usava-se a
sonda; nos demais momentos, Terri
podia ser transportada numa cadeira
de rodas, pegar sol, ser levada de um
ponto ao outro. É isso o que mostram
as imagens que durante meses inundaram o nosso lar.
Aqui nas ruas de Roma, onde me
encontro para cobrir os funerais do
Papa, católicos do mundo inteiro se
mostram tristes mas resignados diante da morte de João Paulo II. Não há
quem lamente que nada se tenha feito
para que a vida do Papa fosse prolongada artificialmente. Mas desejar a
morte porque a vida que se tem não é
aquela com a qual estamos acostumados é algo que não se pode aceitar.
Carrego a certeza de que a repercussão que o caso teve contribuirá
para que tal postura do Judiciário
americano seja revista. Talvez, a interferência política do Executivo e
do Legislativo americanos, legítima
ou não, tenha contribuído para que
o Judiciário tenha se mantido tão
coerentemente irredutível. Longe
do calor político, depois de uma reflexão serena, posições serão revistas. Será tarde para Terri. Mas não
para a Humanidade.