No debate sobre a racializa-
ção da sociedade brasileira,
algumas aberrações são deixadas de lado: os tribunais
"raciais" que existem em pelo menos
duas universidades, na UnB e na Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul. Não se trata de ser contra ou a favor das cotas; ninguém pode ser a favor de um absurdo assim. Como pode
um grupo se dar o direito de julgar, pela aparência, quem é negro ou pardo e
quem não é? O que faz o Ministério Pú-
blico que não impede que algo assim
continue ocorrendo, como se fosse a
coisa mais natural do mundo?
Na UnB, o candidato que optar por
disputar o vestibular pelo sistema de
cotas faz as provas como todos os outros candidatos. No prazo máximo de
dez dias após os exames, os melhores
em cada carreira são chamados para
um julgamento. A proporção é de dois
candidatos para cada vaga oferecida
no sistema de cotas: assim, se o curso
de Administração oferece dez vagas, os
vinte melhores estudantes que se inscreveram na carreira pelo sistema de
cotas serão chamados para que, num
julgamento, o tribunal decida se eles
são mesmo negros ou pardos. Se o tribunal decidir positivamente, suas notas serão apuradas dentro do sistema
de cotas. Se decidir que eles são brancos, a punição é atroz: os estudantes
são simplesmente eliminados do vestibular, não importando a nota que tiverem obtido no teste. Eles sequer têm o
direito de ter as suas notas computadas pelo sistema universal de vagas.
É um total absurdo. O edital diz que o aluno deve decidir se é pardo ou negro. O aluno pode se olhar no espelho
e se ver da cor que quiser, é um direito
dele. Não se trata de mentira. Mas, se a
concepção que faz da cor da sua pele
não coincidir com a de seus juízes "raciais", ele será punido.
Nossas leis permitem essa agressão? Os autores de tal regulamento
não se dão conta do que fazem?
A injustiça do método fica ainda
mais patente quando tomamos conhecimento de que os alunos que se inscreveram no sistema de cotas, mas
não foram chamados para o julgamento, têm as notas auferidas pelo sistema
universal, junto com todos os demais
alunos. Ou seja, eles se consideram negros ou pardos, mas, como não tiveram um bom desempenho nas provas,
deixam de ter direito ao benefício das
cotas. Provavelmente, são os alunos
mais carentes, aqueles que tiveram um
ensino pior. O resultado desse sistema
perverso é que, na prática, as cotas da
UnB beneficiam apenas os alunos mais
ricos entre aqueles cuja cor de pele for
julgada como tendo o tom adequado.
Aos mais pobres, que tiveram um ensino pior, mesmo negros, será negado
o sistema de cotas.
Sob que aspecto se pode dizer
que isso é justo?
Na Universidade Estadual de Mato
Grosso do Sul, a cota se destina apenas aos alunos da escola pública ou
que tenham estudado em escolas privadas com bolsa integral. À primeira
vista, o sistema quer beneficiar os
mais pobres entre aqueles que forem
julgados negros ou pardos. Seria um
pequeno avanço, mas qual a justificativa de deixar de fora os brancos igualmente pobres, se, no Brasil, eles
formam um enorme contingente de 19
milhões de pessoas, um número
maior do que a população de muitos
países no mundo? Não faz sentido, é
cruel, promove a cisão "racial" da pobreza sem que haja alguma justificativa que faça sentido.
O pior, porém, é o método para
se descobrir quem é negro e quem
é pardo. Em pleno século XXI, dá
um nó na alma verificar que ainda
existem pessoas que dividem a Humanidade em "raças".
Todos os inscritos devem apresentar uma foto tamanho 5x7. Um tribunal de seis a sete pessoas fará o julgamento, mas, note, a cor do candidato só será chancelada como negra ou
parda se obtiver um mínimo de cinco
votos, praticamente a unanimidade. E
quais são os critérios? Nas palavras
dos organizadores, os candidatos serão julgados segundo tenham ou não
as seguintes características: "a) pele
muito pigmentada (melanina), b) nariz achatado, c) cabelo pixaim (carapinha); d) lábios carnudos (grossos)".
Ao estudante de pele suficientemente
escura (o que será isso?), basta essa
característica: se a cor da pele for bem
escura, ele pode ter cabelo liso, nariz
afilado e lábios finos, não importa. O
estudante pardo terá de apresentar
sempre duas características, já que o
tom de pele, por definição, nunca é escuro o bastante. Para que o leitor tenha a dimensão do grotesco de se julgar tal coisa, vou enumerar aqui as
possibilidades: nariz achatado e cabelo pixaim, ou nariz achatado e lábios
grossos, ou lábios grossos e cabelo pixaim. Se o estudante pardo tiver apenas o cabelo pixaim, mas o nariz afilado e os lábios finos, estará fora do
sistema de cotas. O mesmo acontecerá se ele tiver o nariz achatado, mas
os cabelos lisos e os lábios finos.
Em plena era da genética, quando
qualquer estudante sabe que o filho de
um pai negro e uma mãe branca (ou
vice-versa), dependendo da ancestralidade do casal, pode ter todos os tipos
de fenótipos, como o Estado permite
que uma universidade arquitete um
conjunto de regras como as que acabo
de descrever? Para se dar conta do
horror, basta imaginar que outra universidade decida criar cotas para pobres, mas apenas os brancos, e, para
isso, crie um tribunal semelhante exigindo que o candidato de pele menos
clara tenha ao menos duas das seguintes características: a) lábios finos, b)
cabelos lisos e c) nariz afilado.
No vestibular de 2007, o tribunal "racial" da UnB julgou e condenou 34 estudantes, que, por não terem sido considerados negros o suficiente, foram
sumariamente eliminados do vestibular. No mesmo ano, 162 alunos foram
julgados pelo tribunal "racial" da Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul e condenados pelo mesmo crime.
Este ano, quantos mais serão?
Até quando o Ministério Público
vai permitir esse horror? Estudantes
estão sendo punidos pela cor da pele. Isso é racismo.