Melhor notícia, difícil. Depois de um ano de trabalho técnico exemplar, o IBGE mostrou que a desnutrição não é mais um grave problema:
o índice de pessoas abaixo do peso é
de 4%, número menor que os 5% considerados normais pela OMS. Há 30
anos, homens e mulheres com déficit
de peso eram o dobro do que são hoje.
Proponho esquecer por um instante a
estranha reação negativa do governo
diante do fato e fazer o que as autoridades não fizeram: entender como alcançamos um êxito de tal importância.
Afinal, não foi por milagre que reduzimos a fome. Nem tampouco porque faz
sol quase o ano inteiro no Brasil.
Durante o regime militar, o gasto social como proporção do PIB se manteve num patamar baixo: 8,8%, de 1972 a
1985. Com a democracia, de Sarney a
Lula, o gasto só fez aumentar. Em 1994,
ele foi de 11,8% do PIB. Em 2002, pulou
para 15,5%. Não há ainda dados consolidados sobre 2003 e 2004. Considerando-se todos os níveis de governo —
municipal, estadual e federal — o gasto social per capita cresceu significativamente: de 1980 a 2000, o aumento foi
de 43,4%, segundo estudo do economista Bresser Pereira.
O resultado não poderia ser outro.
A mortalidade infantil era de 104 por
mil em 1965. Em 1985, caiu para 67, e,
em 2003, para 27,5. A esperança de vida ao nascer era de 55 anos em 1965,
65 anos, em 1985 e, em 2003, pulou para 71 anos. A taxa de analfabetismo
era de 32,9% em 1970, caiu para 25,5%
em 1980 e, em 2003, diminuiu para
10,6%. Com a nutrição dos brasileiros,
aconteceu coisa parecida. A melhora
não foi um golpe do IBGE na política
social do governo, mas o resultado da
política social exigida pelo povo nos
últimos vinte anos. Com um custo altíssimo para o país.
Citemos apenas três programas. O
país gasta R$ 20 bi com aposentadorias
rurais, o maior programa de transferência de renda como costuma dizer com
razão o ex-presidente Fernando Henrique. Todo trabalhador rural ao se aposentar recebe um salário mínimo, sem
que tenha contribuído para o sistema. O
impacto disso na redução da desnutrição certamente foi grande. O Programa de Alimentação do Trabalhador torna possível, há
anos, que empresas deduzam do Imposto de
Renda o dobro das despesas com a alimentação de
funcionários, dentro dos
limites da lei. Hoje, cerca
de oito milhões de trabalhadores se beneficiam
do programa. Com a merenda escolar, o governo
federal gastará em 2005
R$ 1,4 bi para alimentar com um prato
de comida 38 milhões de crianças. Isso
representa 22% da população brasileira.
Estados e municípios destinam verba
ainda maior com o mesmo objetivo.
As autoridades, porém, preferiram
desqualificar o trabalho do IBGE (depois, reclamam da baixa auto-estima
do brasileiro). Criaram um esdrúxulo e
inexistente conceito de "fome gorda",
segundo o qual os pobres estariam acima do peso por consumirem muito
açúcar, gordura e farinha. E disseram
que a mesma pesquisa mostra que
44% da população, 77 milhões de pessoas, "consomem" menos de 1900 calorias/dia (a FAO recomenda 2100 calorias/dia). Ou não leram a pesquisa
ou mentiram deliberadamente:
1) Os de menor renda têm uma dieta
equilibrada, com 69% de carboidratos,
12% de proteínas e 19% de gorduras. A
OMS recomenda entre 55% e 75% de carboidratos, entre 10% e 15% de proteínas
e entre 15% e 30% de gorduras. A proporção de proteína disponível para os
mais pobres — 12% — é considerada
ótima, com a vantagem de que 45% delas são de origem animal.
2) A participação de farinhas na dieta dos mais
pobres é normal, cerca de
apenas 7% de todos os
quilos de alimentos adquiridos. Mesmo que se
entupissem de farinha de
mandioca, não engordariam, porque ela tem baixo valor energético.
3) A participação do
açúcar na dieta é alta,
mas proporcionalmente
melhor entre os mais pobres (o limite máximo é
de 10%): das calorias obtidas de carboidratos, 13% vêm do açúcar. Os de renda
mais alta têm apenas 52% da dieta vindos de carboidratos (abaixo do mínimo
de 55%). Destes, 11% vêm do açúcar.
Portanto, o açúcar, entre os mais pobres, representa 13 pontos percentuais
em 69 (56% dos carboidratos, portanto,
não são açúcar). E, entre os de maior
renda, representa 11 pontos percentuais
de 52 (apenas 41% não são açúcar).
4) Entre os de maior renda, a gordura
representa 34%, quatro pontos acima do
recomendado. Entre os mais pobres, a
participação da gordura é de 19%.
5) O IBGE diz expressamente que não
mediu as calorias "consumidas", mas
apenas as calorias "disponíveis" no domicílio. Porque boa parcela do orçamento do brasileiro é gasta com alimentação
fora de casa: 24%, em média, 12% entre
os mais pobres e 37% na faixa de maior
renda. Essas calorias não foram medidas. Como também não foram medidas
as calorias provenientes de alimentação
"não adquirida", como merenda escolar
e alimentação fornecida no local de trabalho. Se, numa casa, duas crianças almoçam na escola e a empresa onde o
pai trabalha lhe dá o almoço, a família
adquirirá uma quantidade menor de alimentos. As calorias disponíveis no domicílio serão, portanto, menores do que
as de fato ingeridas. Por isso, as pessoas
não emagrecem.
A fome não é mais o que era. Atinge
poucas centenas de milhares de pessoas, nunca milhões. Isso não quer dizer que não mereça mais atenção. Insistir, porém, em gastar mais R$ 9 bi
ao ano, todos os anos, com o Bolsa Família é um erro. Parte desse valor deve ser usada para extinguir a fome de
vez, mas os recursos, em sua maioria,
deveriam ser canalizados para saneamento, educação e desenvolvimento
regional, o que ajudaria a tirar milhões da pobreza, esta sim a grande
chaga nacional.
Em um país maduro, a pesquisa do
IBGE obrigaria o governo a rever seus
planos. Aqui, porém, o presidente pode jogá-la no lixo e insistir em dar de
comer a quem não tem fome. E ainda
dizem que, no Brasil, é pequeno o poder dos presidentes.