O anteprojeto de reforma universitária, em discussão pública até 15 de fevereiro, é
assim: uma leitura ligeira dá
a impressão de que ele veio para refor-
çar a liberdade acadêmica, dar autonomia às universidades e impedir que o
ranço ideológico atrapalhe o desenvolvimento científico. Mas é o contrário:
ele é dirigista e levará a universidade,
pública e privada, à tutela do governo
e de movimentos sociais.
Para melhor entendimento do que
digo, reproduzo aqui alguns pontos
do anteprojeto (os grifos são meus).
No artigo terceiro, inciso segundo,
está dito que a educação superior
terá como um dos objetivos a "formação e a qualificação de quadros
profissionais, (...) cujas habilitações
estejam especificamente direcionadas ao atendimento de necessidades do desenvolvimento econômico, social, cultural, científico e tecnológico regional (...) " .
O artigo quarto define os preceitos
que devem reger a educação superior.
Um deles, segundo o inciso segundo,
é a "responsabilidade social". O outro,
descrito pelo inciso quarto, é o "atendimento das necessidades definidas
como de interesse público, (...) em razão dos interesses nacionais, especialmente com vista à redução de desigualdades sociais e regionais (...)". Ao
definir o que é responsabilidade social, o artigo quinto relaciona nove incisos. O segundo explica que tem responsabilidade social a instituição que
observar o "atendimento de políticas
e planejamento públicos para a educa-
ção superior".
Para "examinar" o cumprimento
das exigências a serem seguidas pelas
universidades, públicas e privadas,
cria-se o Conselho Comunitário Social, presidido pelo reitor, com a participação do vice-reitor, de representantes do poder público, mas composto majoritariamente por pessoas
de fora da universidade, como membros de entidades corporativas, entidades de fomento, associações de
classe, sindicatos e sociedade civil.
Este conselho terá muitas atribui-
ções, entre elas avaliar o planejamento estratégico da instituição, emitindo
relatórios que terão de ser levados
obrigatoriamente em conta pelo MEC
nas avaliações das universidades.
Pronto, o círculo está fechado. Primeiro, diz-se que as universidades,
públicas e privadas, devem estar voltadas para o desenvolvimento regional, segundo os interesses nacionais
e atendendo às políticas e aos planejamentos públicos, definidos pelo governo. Depois, cria-se um conselho
da "sociedade civil", que irá tutelá-
las. A partir disso, como falar em autonomia e liberdade acadêmica e de
pesquisa? A universidade tem de ser
livre, pesquisar as diversas áreas do
conhecimento humano, afastada toda visão utilitarista da ciência. Do jeito que está proposto, um burocrata
do MEC ou o tal Conselho Comunitário Social pode dizer que esta ou
aquela área não deve ser estudada
porque está fora do que imaginam
ser o interesse nacional, o que é contra a essência mesma da ciência.
Algo totalmente soviético, do tempo em que se acreditava na planificação irrestrita da sociedade. Se isso é
descabido em relação a instituições
públicas, é delirante em relação às
privadas. A Lei de Diretrizes e Bases
da Educação tem uma redação muito
mais condizente com o espírito livre
que deve reger as universidades (e
que é seguido em todos os países sé-
rios do mundo). Entre muitos itens
que falam do estímulo ao desenvolvimento da investigação científica, a lei
estabelece que é finalidade da educação superior "estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e
regionais (...)". Redigida dessa maneira, a liberdade de pesquisa não tem
condicionantes, como não deve ter.
No anteprojeto, é apenas formal o
reconhecimento de ampla autonomia
administrativa, didático-científica e
de gestão financeira e patrimonial.
Porque, além do que já demonstrei,
os reitores e vice-reitores, nas universidades públicas federais, terão de
ser eleitos pelo voto direto de professores, funcionários e alunos (peso
maior para docentes). As instituições
serão administradas por um colegiado, cujos membros também serão escolhidos pelo voto direto. Nas universidades particulares, pelo menos
um dos membros do conselho superior terá de ser eleito pelo voto direto. Ou seja, a universidade é livre para se organizar, desde que se organize do modo como o atual governo
acha que é o certo.
O anteprojeto impõe também a universidades públicas e privadas a presença de funcionários administrativos
em seus conselhos superiores, que decidirão em última instância a vida da
instituição. Por que um funcionário deve opinar sobre o que uma universidade produz? É o mesmo que propor que
auxiliares de escritório façam parte do
conselho de uma grande produtora e
possam opinar sobre os filmes a produzir, o roteiro, a direção artística. Esse
viés sindicalista está também na obrigatoriedade de as universidades destinarem espaços físicos para os órgãos de
classe. O que uma sala para sindicato
tem a ver com a produção científica?
Em relação às universidades privadas, o anteprojeto é francamente
hostil. Enquanto a Constituição reconhece que o ensino privado é um direito, a proposta do MEC, em seu artigo sexto, diz que "a liberdade de ensino à iniciativa privada será exercida em razão e nos limites da função
social da educação superior". E o parágrafo sexto do artigo 64 determina
que 70% do capital total e do capital
votante das mantenedoras deverão
pertencer a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos. Na
hipótese de Harvard desejar instalar
no país um centro de excelência, não
poderá. Talvez para impedir que os
nossos jovens sejam inoculados com
o vírus vindo de um país em que não
há condicionantes para a liberdade.
Por fim, o financiamento das universidades públicas. Segundo o anteprojeto, o governo destinará ao ensino superior 75% das verbas da União
carimbadas para a educação, excluído o dinheiro do futuro Fundeb. No
cálculo otimista do governo, será
mais R$ 1 bi. O anteprojeto garante
que as universidades receberão no
mínimo a quantia do ano anterior
acrescida do necessário para cobrir
o reajuste do funcionalismo. Sopa no
mel. Pegue um orçamento gordo e irredutível, dê a professores, funcionários e alunos a obrigação de disputá-
lo no voto e o leitor poderá imaginar
no que as universidades se transformarão. O certo seria o financiamento
público de acordo com metas objetivas de qualidade: número de cursos,
de alunos, de formandos, de doutores, de linhas de pesquisa (quaisquer
que sejam), de teses publicadas etc.
E as universidades deveriam ser estimuladas a conseguir fontes de financiamento privado.
As universidades têm de ser livres
para estudar o que a sua vocação determinar, autônomas para se organizar da melhor maneira para atingir os
seus fins e responsáveis pelo seu financiamento. Se forem bem geridas,
terão alunos, prestígio e verbas.
Nisso, o anteprojeto é coerente:
não reforça a liberdade acadêmica,
não dá autonomia nem tampouco impõe responsabilidades.
PS: Sim, claro, o anteprojeto torna
obrigatória a adoção de políticas de
ação afirmativa e põe um fim à meritocracia. Cria um programa de monitores, mas determina que os escolhidos não serão os melhores, mas os
melhores entre os mais pobres.