"Tutelando a universidade", O Globo, 11/01/2005 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

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"Tutelando a universidade", O Globo, 11/01/2005

O anteprojeto de reforma universitária, em discussão pública até 15 de fevereiro, é assim: uma leitura ligeira dá a impressão de que ele veio para refor- çar a liberdade acadêmica, dar autonomia às universidades e impedir que o ranço ideológico atrapalhe o desenvolvimento científico. Mas é o contrário: ele é dirigista e levará a universidade, pública e privada, à tutela do governo e de movimentos sociais.

Para melhor entendimento do que digo, reproduzo aqui alguns pontos do anteprojeto (os grifos são meus). No artigo terceiro, inciso segundo, está dito que a educação superior terá como um dos objetivos a "formação e a qualificação de quadros profissionais, (...) cujas habilitações estejam especificamente direcionadas ao atendimento de necessidades do desenvolvimento econômico, social, cultural, científico e tecnológico regional (...) " .

O artigo quarto define os preceitos que devem reger a educação superior. Um deles, segundo o inciso segundo, é a "responsabilidade social". O outro, descrito pelo inciso quarto, é o "atendimento das necessidades definidas como de interesse público, (...) em razão dos interesses nacionais, especialmente com vista à redução de desigualdades sociais e regionais (...)". Ao definir o que é responsabilidade social, o artigo quinto relaciona nove incisos. O segundo explica que tem responsabilidade social a instituição que observar o "atendimento de políticas e planejamento públicos para a educa- ção superior".

Para "examinar" o cumprimento das exigências a serem seguidas pelas universidades, públicas e privadas, cria-se o Conselho Comunitário Social, presidido pelo reitor, com a participação do vice-reitor, de representantes do poder público, mas composto majoritariamente por pessoas de fora da universidade, como membros de entidades corporativas, entidades de fomento, associações de classe, sindicatos e sociedade civil. Este conselho terá muitas atribui- ções, entre elas avaliar o planejamento estratégico da instituição, emitindo relatórios que terão de ser levados obrigatoriamente em conta pelo MEC nas avaliações das universidades.

Pronto, o círculo está fechado. Primeiro, diz-se que as universidades, públicas e privadas, devem estar voltadas para o desenvolvimento regional, segundo os interesses nacionais e atendendo às políticas e aos planejamentos públicos, definidos pelo governo. Depois, cria-se um conselho da "sociedade civil", que irá tutelá- las. A partir disso, como falar em autonomia e liberdade acadêmica e de pesquisa? A universidade tem de ser livre, pesquisar as diversas áreas do conhecimento humano, afastada toda visão utilitarista da ciência. Do jeito que está proposto, um burocrata do MEC ou o tal Conselho Comunitário Social pode dizer que esta ou aquela área não deve ser estudada porque está fora do que imaginam ser o interesse nacional, o que é contra a essência mesma da ciência.

Algo totalmente soviético, do tempo em que se acreditava na planificação irrestrita da sociedade. Se isso é descabido em relação a instituições públicas, é delirante em relação às privadas. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação tem uma redação muito mais condizente com o espírito livre que deve reger as universidades (e que é seguido em todos os países sé- rios do mundo). Entre muitos itens que falam do estímulo ao desenvolvimento da investigação científica, a lei estabelece que é finalidade da educação superior "estimular o conhecimento dos problemas do mundo presente, em particular os nacionais e regionais (...)". Redigida dessa maneira, a liberdade de pesquisa não tem condicionantes, como não deve ter.

No anteprojeto, é apenas formal o reconhecimento de ampla autonomia administrativa, didático-científica e de gestão financeira e patrimonial. Porque, além do que já demonstrei, os reitores e vice-reitores, nas universidades públicas federais, terão de ser eleitos pelo voto direto de professores, funcionários e alunos (peso maior para docentes). As instituições serão administradas por um colegiado, cujos membros também serão escolhidos pelo voto direto. Nas universidades particulares, pelo menos um dos membros do conselho superior terá de ser eleito pelo voto direto. Ou seja, a universidade é livre para se organizar, desde que se organize do modo como o atual governo acha que é o certo.

O anteprojeto impõe também a universidades públicas e privadas a presença de funcionários administrativos em seus conselhos superiores, que decidirão em última instância a vida da instituição. Por que um funcionário deve opinar sobre o que uma universidade produz? É o mesmo que propor que auxiliares de escritório façam parte do conselho de uma grande produtora e possam opinar sobre os filmes a produzir, o roteiro, a direção artística. Esse viés sindicalista está também na obrigatoriedade de as universidades destinarem espaços físicos para os órgãos de classe. O que uma sala para sindicato tem a ver com a produção científica?

Em relação às universidades privadas, o anteprojeto é francamente hostil. Enquanto a Constituição reconhece que o ensino privado é um direito, a proposta do MEC, em seu artigo sexto, diz que "a liberdade de ensino à iniciativa privada será exercida em razão e nos limites da função social da educação superior". E o parágrafo sexto do artigo 64 determina que 70% do capital total e do capital votante das mantenedoras deverão pertencer a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos. Na hipótese de Harvard desejar instalar no país um centro de excelência, não poderá. Talvez para impedir que os nossos jovens sejam inoculados com o vírus vindo de um país em que não há condicionantes para a liberdade.

Por fim, o financiamento das universidades públicas. Segundo o anteprojeto, o governo destinará ao ensino superior 75% das verbas da União carimbadas para a educação, excluído o dinheiro do futuro Fundeb. No cálculo otimista do governo, será mais R$ 1 bi. O anteprojeto garante que as universidades receberão no mínimo a quantia do ano anterior acrescida do necessário para cobrir o reajuste do funcionalismo. Sopa no mel. Pegue um orçamento gordo e irredutível, dê a professores, funcionários e alunos a obrigação de disputá- lo no voto e o leitor poderá imaginar no que as universidades se transformarão. O certo seria o financiamento público de acordo com metas objetivas de qualidade: número de cursos, de alunos, de formandos, de doutores, de linhas de pesquisa (quaisquer que sejam), de teses publicadas etc. E as universidades deveriam ser estimuladas a conseguir fontes de financiamento privado.

As universidades têm de ser livres para estudar o que a sua vocação determinar, autônomas para se organizar da melhor maneira para atingir os seus fins e responsáveis pelo seu financiamento. Se forem bem geridas, terão alunos, prestígio e verbas. Nisso, o anteprojeto é coerente: não reforça a liberdade acadêmica, não dá autonomia nem tampouco impõe responsabilidades.

PS: Sim, claro, o anteprojeto torna obrigatória a adoção de políticas de ação afirmativa e põe um fim à meritocracia. Cria um programa de monitores, mas determina que os escolhidos não serão os melhores, mas os melhores entre os mais pobres.