No edital que em explicita as
regras do próximo vestibular,
a Universidade Nacional de
Brasília adotou o sistema de
cotas para negros, mas com uma novidade: o estudante pardo também poderá se beneficiar das cotas. Parecia que,
finalmente, uma injustiça começava a
ser reparada. Maioria entre os pobres
brasileiros, com um índice de 57%, os
pardos estavam sendo postos à margem do processo pelas universidades
estaduais que adotaram o sistema. Todo esse contingente se somava aos 19
milhões de brancos pobres, relegados à
própria sorte por um modelo que visa
apenas a beneficiar os negros, ou pretos, como prefiram (7% dos pobres do
país). Mas a novidade era apenas aparente e se destinava apenas a fugir do
problema exposto acima. O que propõe
a UnB é um absurdo, do ponto de vista
da lógica, da ética e das leis de igualdade racial que, até aqui, regiam a nossa República.
Porque o edital diz o seguinte, no
seu item 3.1: "Para concorrer às vagas
reservadas por meio do sistema de cotas para negros, o candidato deverá:
ser de cor preta ou parda; declarar-se
negro(a) e optar pelo sistema de cotas
para negros." Ou seja, o aluno pardo
terá de se olhar no espelho, constatar,
mais uma vez desde que nasceu, que a
cor da sua pele não é negra (ou preta)
nem branca, é parda.
Feito isso, ao preencher a ficha deinscrição, ele terá de assinalar a op-
ção que mais bem caracteriza a cor
de sua pele: pardo. E, em seguida, será instado a mentir, declarando-se
negro. Esse procedimento não resiste à lógica, porque, se o aluno é pardo, ele não pode ser negro. Não resiste à ética, porque obriga o aluno a
mentir, declarando-se negro, quando
na verdade ele é pardo. E não resiste
às leis de igualdade racial de nosso
país, porque ninguém
pode ser discriminado
pela cor da pele. Isso é
racismo.
Mas o edital vai além.
Ele também fere as leis
que impedem toda possibilidade de submeter
cidadãos a constrangimentos morais. E não é
outra coisa que acontecerá a milhares de alunos pardos que venham
a ser barrados no sistema de cotas. Porque ele
será chamado de mentiroso. O edital
estabelece o seguinte, no item 3.2: "No
momento da inscrição, o candidato será fotografado e deverá assinar declaração específica relativa aos requisitos
exigidos para concorrer pelo sistema
de cotas para negros." E o item 3.3 conclui: "O pedido de inscrição e a foto
que será tirada no momento da inscri-
ção serão analisados por uma Comissão que decidirá pela homologação ou
não da inscrição do candidato pelo sistema de cotas para negros."
Portanto, o candidato pardo terá de
se dizer obrigatoriamente negro e, depois, sua foto será analisada por uma
comissão que verificará que ele, não
sendo negro, mentiu, e, logo, não tem
direito a participar das cotas. A inclusão de pardos é apenas uma ilusão,
uma maneira encontrada para fugir das
críticas. Porque está clara a intenção da
UnB: só se beneficiarão das cotas os negros pretos (um pleonasmo) ou os pardos negros (uma impossibilidade ótica). E quem
terá o poder para decidir
quem é uma coisa ou outra, num país de miscigenados como o nosso, é
uma comissão de umas
poucas pessoas, únicas
capazes de fazer tal distinção.
Depois de insistirem,
em artigos especializados e livros, que os negros são 45% da popula-
ção, quando na verdade
são apenas 6,2%, os pesquisadores
que estudam o assunto vieram a pú-
blico dizer que "negros" foi uma categoria por eles criada, que é a soma
dos que se declaram pretos e pardos
no Censo do IBGE. Agiram assim, segundo explicaram, porque os indicadores socioeconômicos das duas categorias são em tudo semelhantes.
Não vou nem dizer que, sendo os pardos a maior parte desse grupo (39%)
e os pretos, a menor (6,2%), talvez fizesse mais sentido apelidar o grupo
resultante dessa soma de "pardos" e
não de "negros". Mas, para que não
pairasse qualquer dúvida, melhor teria sido chamar o grupo pelo nome
correto: "os pretos e os pardos". Isso
evitaria toda sorte de mal-entendidos.
Ou de ilusões, como essa que quer
vender agora a UnB. Porque é estatisticamente impossível dizer quem, entre os 39% de pardos no Brasil, é mais
escuro, mais claro, menos branco,
menos preto. Será a maioria ou a minoria ou o quê? Ninguém sabe. A UnB
teria sido mais honesta se tivesse agido com transparência total, e instituí-
do cotas apenas para negros, sinônimo de preto para a imensa maioria do
nosso povo. Agindo assim, ao menos,
deixaria que os 30 milhões de pardos
pobres e os 19 milhões de brancos pobres pudessem lutar pelos seus direitos, sem ilusões.
l P.S.: Depois de anunciar que o governo tentaria implementar suas
idéias sobre cotas raciais através de
um projeto de lei, instrumento mais
democrático por permitir uma discussão franca no Congresso, o ministro Tarso Genro voltou atrás e diz
que editará uma medida provisória
sobre o assunto que, como todos sabem, tem força de lei no momento da
sua edição. Num assunto tão controverso, num país que sempre primou
por não "racializar" as suas leis, essa
não me parece uma atitude sensata.