"UnB: pardos só se forem negros", O Globo, 20/03/2004 | Artigos - Ali Kamel 

Autor: Ali Kamel

Google+

Artigos do Autor

"UnB: pardos só se forem negros", O Globo, 20/03/2004

No edital que em explicita as regras do próximo vestibular, a Universidade Nacional de Brasília adotou o sistema de cotas para negros, mas com uma novidade: o estudante pardo também poderá se beneficiar das cotas. Parecia que, finalmente, uma injustiça começava a ser reparada. Maioria entre os pobres brasileiros, com um índice de 57%, os pardos estavam sendo postos à margem do processo pelas universidades estaduais que adotaram o sistema. Todo esse contingente se somava aos 19 milhões de brancos pobres, relegados à própria sorte por um modelo que visa apenas a beneficiar os negros, ou pretos, como prefiram (7% dos pobres do país). Mas a novidade era apenas aparente e se destinava apenas a fugir do problema exposto acima. O que propõe a UnB é um absurdo, do ponto de vista da lógica, da ética e das leis de igualdade racial que, até aqui, regiam a nossa República.

Porque o edital diz o seguinte, no seu item 3.1: "Para concorrer às vagas reservadas por meio do sistema de cotas para negros, o candidato deverá: ser de cor preta ou parda; declarar-se negro(a) e optar pelo sistema de cotas para negros." Ou seja, o aluno pardo terá de se olhar no espelho, constatar, mais uma vez desde que nasceu, que a cor da sua pele não é negra (ou preta) nem branca, é parda.

Feito isso, ao preencher a ficha deinscrição, ele terá de assinalar a op- ção que mais bem caracteriza a cor de sua pele: pardo. E, em seguida, será instado a mentir, declarando-se negro. Esse procedimento não resiste à lógica, porque, se o aluno é pardo, ele não pode ser negro. Não resiste à ética, porque obriga o aluno a mentir, declarando-se negro, quando na verdade ele é pardo. E não resiste às leis de igualdade racial de nosso país, porque ninguém pode ser discriminado pela cor da pele. Isso é racismo.

Mas o edital vai além. Ele também fere as leis que impedem toda possibilidade de submeter cidadãos a constrangimentos morais. E não é outra coisa que acontecerá a milhares de alunos pardos que venham a ser barrados no sistema de cotas. Porque ele será chamado de mentiroso. O edital estabelece o seguinte, no item 3.2: "No momento da inscrição, o candidato será fotografado e deverá assinar declaração específica relativa aos requisitos exigidos para concorrer pelo sistema de cotas para negros." E o item 3.3 conclui: "O pedido de inscrição e a foto que será tirada no momento da inscri- ção serão analisados por uma Comissão que decidirá pela homologação ou não da inscrição do candidato pelo sistema de cotas para negros."

Portanto, o candidato pardo terá de se dizer obrigatoriamente negro e, depois, sua foto será analisada por uma comissão que verificará que ele, não sendo negro, mentiu, e, logo, não tem direito a participar das cotas. A inclusão de pardos é apenas uma ilusão, uma maneira encontrada para fugir das críticas. Porque está clara a intenção da UnB: só se beneficiarão das cotas os negros pretos (um pleonasmo) ou os pardos negros (uma impossibilidade ótica). E quem terá o poder para decidir quem é uma coisa ou outra, num país de miscigenados como o nosso, é uma comissão de umas poucas pessoas, únicas capazes de fazer tal distinção.

Depois de insistirem, em artigos especializados e livros, que os negros são 45% da popula- ção, quando na verdade são apenas 6,2%, os pesquisadores que estudam o assunto vieram a pú- blico dizer que "negros" foi uma categoria por eles criada, que é a soma dos que se declaram pretos e pardos no Censo do IBGE. Agiram assim, segundo explicaram, porque os indicadores socioeconômicos das duas categorias são em tudo semelhantes. Não vou nem dizer que, sendo os pardos a maior parte desse grupo (39%) e os pretos, a menor (6,2%), talvez fizesse mais sentido apelidar o grupo resultante dessa soma de "pardos" e não de "negros". Mas, para que não pairasse qualquer dúvida, melhor teria sido chamar o grupo pelo nome correto: "os pretos e os pardos". Isso evitaria toda sorte de mal-entendidos. Ou de ilusões, como essa que quer vender agora a UnB. Porque é estatisticamente impossível dizer quem, entre os 39% de pardos no Brasil, é mais escuro, mais claro, menos branco, menos preto. Será a maioria ou a minoria ou o quê? Ninguém sabe. A UnB teria sido mais honesta se tivesse agido com transparência total, e instituí- do cotas apenas para negros, sinônimo de preto para a imensa maioria do nosso povo. Agindo assim, ao menos, deixaria que os 30 milhões de pardos pobres e os 19 milhões de brancos pobres pudessem lutar pelos seus direitos, sem ilusões.

l P.S.: Depois de anunciar que o governo tentaria implementar suas idéias sobre cotas raciais através de um projeto de lei, instrumento mais democrático por permitir uma discussão franca no Congresso, o ministro Tarso Genro voltou atrás e diz que editará uma medida provisória sobre o assunto que, como todos sabem, tem força de lei no momento da sua edição. Num assunto tão controverso, num país que sempre primou por não "racializar" as suas leis, essa não me parece uma atitude sensata.