Não pude deixar de rir. Todo mundo falou
a mesma coisa, aqui e lá fora. "Na cultura
árabe, arremessar sapatos é uma grande
demonstração de desrespeito", publicou a
Bloomberg.com. "Arremessar sapatos contra
alguém é um insulto tremendo no Oriente
Médio", divulgou a Reuters. "Na cultura
iraquiana, jogar sapatos contra alguém é um
sinal de desprezo", informou a Associated
Press.
E eu pergunto: Haverá algum lugar do
mundo em que levar uma sapatada na cara
não seja um insulto ultrajante? Haverá
alguma cultura que interprete uma boa
sapatada como uma demonstração de afeto?
O que Muntazer al-Zaidi, o atirador de
sapatos, quis fazer foi ferir fisicamente Bush,
um ato bárbaro. Presumo que os sapatos
fossem os objetos à mão que ofereciam a
melhor aerodinâmica e o melhor potencial de
dano para os propósitos do jornalista. Afinal,
com os detectores de metal, nada preenchia
os mesmos requisitos: um bloco de notas,
uma caneta, mesmo um laptop, nada disso
voaria tão bem e causaria tanto estrago
quanto os tais sapatos.
Não resta dúvida de que sapatos ocupam
um lugar baixo na cultura árabe. Mas são
apenas regras de etiqueta, porque não há
nada na religião islâmica contra sapatos.
Deixar à mostra a sola quando se senta com
as pernas cruzadas é considerado de mau
gosto, porque ela é imunda. Pela mesma
razão, não se deve entrar com sapatos numa
mesquita, mas novamente isso tem a ver
com etiqueta, não é um mandamento
religioso: o Profeta Maomé às vezes rezava
com sapatos, às vezes sem. Citaram ditados
muito freqüentes no mundo árabe: "Fulano
não vale a sola do meu sapato" ou "Fulano é
da altura do meu sapato", tudo isso
significando que Fulano não vale nada. Mas é
exatamente como o nosso "Fulano não chega
aos meus pés". Quando da tomada de Bagdá,
iraquianos batiam com sapatos na cara da
estátua de Saddam, derrubada ao solo.
Provavelmente porque chutar ferro fundido
provoque dor. Eles também batiam com
sapatos em quadros de Saddam, talvez
porque seja mais fácil tirar os sapatos do
que procurar outro objeto para servir de
porrete. Tudo isso pode ter levado a
imprensa mundial a exagerar no simbolismo
da sapatada. Árabes que usam túnica e lenço
na cabeça, quando querem agredir alguém,
arremessam o turbante, mais fácil de tirar do
que os sapatos. O jornalista também chamou
Bush de "cachorro", e todos lembraram que
o insulto provinha do fato de que o Profeta
Maomé considerava cachorros sujos. O
mundo cristão não liga a mínima para o que
o Profeta disse, mas, convenhamos, ninguém
pelas bandas de cá vai se sentir elogiado ao
ser chamado de cachorro.
No fundo, trata-se de uma tremenda
injustiça contra o gênio do arremessador de
sapatos. O sujeito demonstra ter uma
inventividade ímpar, consegue enganar o
serviço secreto americano, e tudo o que
dizem dele é que ele quis insultar Bush
usando os sapatos porque são símbolo de
mau gosto para os muçulmanos? Em
eventos com a presença de autoridades é
impossível entrar com objetos que possam
ser usados como arma. Estive na convenção
democrata em Denver, e não podíamos
entrar com maçãs ou laranjas, mas com
água, sim (se bebêssemos um gole). Um
guarda explicou: maçãs e laranjas facilitam a
pontaria, porque fazem um percurso reto e
direto, enquanto garrafinhas ziguezagueiam.
Sapatos eram liberados. Até surgir Muntazer
al-Zaidi. Ele olhou para os pés, sentiu o peso
de seus sapatos, experimentou a sua
aerodinâmica, e pronto: percebeu que tinha
duas armas nos pés. É como Bin Laden, que
transformou o avião numa arma de
destruição em massa. Se aqueles solados
grossos atingissem Bush, não sabemos as
conseqüências: cegamento de um olho,
afundamento craniano?
O que me intriga é como estarão os pés
dos repórteres na próxima vez em que um
presidente americano estiver em solo
estrangeiro. Estarão descalços ou será
inventado algum dispositivo anti-sapatada,
como um vidro na frente do entrevistado?